Estamos perante a um processo acelerado de desumanização retórica e agora política e legal do imigrante enquanto sujeito destituído de direitos, tendo, somente, que cumprir um conjunto de deveres como o de trabalhar, integrar-se e respeitar os valores culturais da comunidade de acolhimento. Esta política de assimilação cultural e dos valores europeus remonta ao período colonial, cuja missão civilizadora visava, no essencial, impor aos indígenas os valores culturais europeus.
Este tipo de discurso, que era visto até há pouco tempo como o apanágio dos movimentos nacionalistas e racistas europeus, passou a integrar a prática governativa, como fica patente na nova lei sobre os estrangeiros aprovada em Portugal. Às associações que representam as pessoas imigrantes foi vedada a possibilidade de se pronunciarem durante este processo legislativo, partindo do pressuposto que o imigrante não deve ser auscultado e não merece ser tratado como sujeito político.
A legislação aprovada criará duas categorias de imigrantes: i) o imigrante rico e altamente qualificado, que merece ser tratado com dignidade; e ii) o imigrante pobre e etnicamente diferente, que está obrigado a integrar-se e a trabalhar, e que poderá almejar ao reagrupamento familiar, ou seja ao direito à vida conjugal e familiar, depois de (e se) cumpridos estes deveres.
Caso o diploma aprovado venha a ser publicado e entre em vigor, o imigrante pobre deixará de ter direito à vida familiar, com repercussões sérias para a sua vida afectiva. Este direito – supostamente protegido pelo texto constitucional – ficará à mercê de um expediente administrativo de abertura de vagas junto da AIMA. Conclui-se, assim, que esta legislação não procura compreender, nem mensurar, os possíveis efeitos desta alteração de paradigma sobre as pessoas imigrantes. Estes sujeitos ficarão condenados ao isolamento, envolvendo-se, cada vez menos, com a comunidade, o que poderá traduzir-se em elevadas taxas de alcoolismo e de depressão no seio da comunidade migrante.
Acresce, ainda, que o imigrante pobre, presentemente, não consegue arrendar uma casa e consequentemente corre o risco de não conseguir obter uma autorização de residência, pelo que fica sujeito à exploração e a esquemas que monetizam o seu desespero e vulnerabilidade até à sua regularização. Com a crise da habitação em Portugal, os imigrantes correm o risco de serem vistos como os principais responsáveis de uma crise global, que necessita de um culpado visível e facilmente identificável no espaço público, como já ensaiou a Secretária de Estado da Habitação ao associar a questão do Bairro do Talude à imigração ilegal.
Estão, assim, criadas as condições para os partidos racistas e de extrema-direita utilizarem a questão de emergência humanitária da habitação como algo criminoso e de ilegalidade, associada aos imigrantes pobres. Portugal não pode decidir ter/receber imigrantes, aproveitando a sua força de trabalho e as suas contribuições para a Segurança Social, e, depois, marginalizar e desumanizar estas pessoas. Os tempos estão assustadores para os imigrantes em Portugal.