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Detlef Gürtler “A revolução digital vai desconstruir a organização social atual”

Detlef Gürtler tem dedicado parte do seu trabalho a projetar o futuro do trabalho e da economia. A visão do investigador nãoé catastrófica – aliás, defende que a revolução digital poderá revelar-se o caminho para a realização plena do ser humano. A questão centra-se sobretudo em desenvolver alternativas de rendimentos, diz.
6 Outubro 2018, 13h00

Detlef Gürtler é investigador sobre futurologia no Instituto Gottlieb-Duttweiler na Suíça e jornalista da área da economia. Autor de vários livros, escreveu ainda para diversas publicações, entre as quais os jornais “taz”, “Die Welt”, “Der Freitag” e “Handelsblatt”. Irá estar em Lisboa, no próximo dia 26, para participar no debate ‘A actualidade de Karl Marx na era digital’, inserido no ciclo “Quo Vadis, Europa?”, organizado pelo Goethe Institut Lisboa.

Em entrevista ao Jornal Económico, Gürtler defende que o futuro passará por encontrar alternativas de rendimento, além do factor “trabalho” e que a ausência de resposta para minimizar a polarização de distribuição levará a uma revolução.

De que forma é que a chamada “quarta revolução industrial” transformaráa organização da sociedade?

Prefiro não contar quatro. O que estamos a viver não é apenas mais uma repetição da revolução industrial original – não é apenas um “mais do mesmo”, é algo completamente diferente; e leva, de muitas formas, a efeitos opostos aos das revoluções industriais a que já assistimos. Prefiro usar o conceito de uma nova número um: a revolução digital.

O que entende por revolução digital?

Transformar coisas em serviço. A economia digital não se resume ao hardware, a produtos para comprar e consumir – é sobre software, sobre serviços para usar, compartilhar, para responder às nossas necessidades. Numa indústria analógica, o foco está no produtor:  fabrica e vende as coisas, oferece os empregos. Numa indústria digital, o foco está em nós: queremos algo e conseguimo-lo. Basta perguntar à Alexa [assistente digital]. Não é preciso um carro para ter mobilidade e nem uma TV para ver notícias ou filmes. As pessoas e as suas necessidades podem continuar mais ou menos iguais, mas a economia ficará do avesso.

Quais são as consequências dessa transformação?

Comecemos pelas más notícias: esta revolução digital irá desconstruir a organização social formada na era industrial. A sociedade como a conhecemos tem sido, em grande parte, uma conquista da primeira revolução industrial. O rápido crescimento das fábricas e cidades prejudicou ou destruiu o tecido social tradicional da família e da vizinhança – grandes instituições como a segurança social, o welfare state ou os sindicatos surgiram para responder a isso, ainda que com um atraso de algumas décadas. Contribuíram para novas redes sociais básicas e lançaram as bases para a sociedade moderna. A revolução digital mudará fundamentalmente esse padrão: as grandes instituições, otimizadas para a oferta e a procura em massa, sofrerão o impacto ou serão destruídas por uma tecnologia que possibilite a individualização e a instantaneidade. Isso vai afetar tanto o Big Business, como o Big Labour e o Big Government. Mas também há boas notícias:_mais uma vez, surgirá algo para enfrentar isto e algumas novas instituições, plataformas e soluções contribuirão para novas formas de sociedade. Penso que serão mais descentralizadas – quanto mais fraco o Governo central, mais importante é o papel das cidades e dos bairros. E irão concentrar-se menos em dinheiro e mais na confiança e na amizade. Em poucas palavras: a revolução digital irá reavivar as virtudes da humanidade pré-moderna e irá combiná-las com tecnologias mágicas.

Essa alteração já está a ter um grande impacto no mundo laboral. De que forma é que irá determinar o futuro do trabalho na Europa?

No meu primeiro livro, “Humane Revolution”, de 2001, fiz previsões de que o século XXI nos conduziria até uma economia em que todos podem fazer o que quiserem: quanto mais gostar do que faz, mais produtivo será. A sociedade e o empregador terão melhores resultados se apenas nos derem liberdade absoluta. Devo admitir que ainda não estamos nessa fase – mas restam 81 anos neste século. Ainda estou otimista de que o futuro do trabalho é mais sobre liberdade e auto-expressão do que sobre comando e necessidade.

Isso reflectir-se-á na forma como “vivemos” o trabalho?

Sim, e isso já acontece. O trabalho remoto cresceu, o conceito de um local de trabalho fixo com horário de trabalho fixo está a diminuir cada vez mais. Quem trabalha na área do conhecimento está a trabalhar seja qual for o local físico onde se encontre. Os funcionários na área dos recursos humanos estão no trabalho no local onde encontram os clientes. Na área industrial são, principalmente, máquinas. O trabalho na era industrial era fazer com que os seres humanos se encaixassem nos processos de produção. Na era digital, existem boas oportunidades de  que possamos reverter isso – adaptar os processos de produção de forma a que se ajustem ao ser humano.

Mas esse outro lado, da automatização dos processos irá reflectir-se numa diminuição das ofertas de trabalho disponíveis?

Sim e não. Iremos ver um grande crescimento de oportunidades – para conseguir algo, para fazer as coisas acontecerem. Mas apenas uma pequena parte serão oportunidades de empregos estáveis, nos quais se ganha o suficiente para uma vida decente. A grande questão é saber se isso será um problema. Teremos de lutar pela sobrevivência, vender o nosso tempo à Uber e a nossa privacidade ao Airbnb ou conseguir os recursos de que precisamos para uma vida decente de outra forma – de uma forma que não nos escravize, mas que nos dê a liberdade de seguir a nossa própria estrela.

Precisamos, então, de encontrar fontes alternativas de rendimento?

Precisamos e vamos. O referendo suíço sobre o rendimento básico universal, em 2016, pode ter sido feito antes do tempo – e só obteve 23% dos votos -, mas existem muitas razões para uma maior e mais forte separação entre o trabalho e o rendimento. E a revolução digital pode dar origem aos recursos necessários para isso – quando os produtos básicos são produzidos principalmente por máquinas, por que não distribuí-los para todos? Uma proposta que gosto especialmente é o denominado rendimento básico social: Se fizer algo pela sociedade, a sociedade irá fazer algo de volta por si. Se gastar, por exemplo, mil horas por ano em ações de solidariedade, serviço comunitário ou outras formas de contribuições para o bem comum, ganhará mil euros por mês.

As previsões são de que esta transformação irá levar a uma crescente polarização da distribuição.

Esse tipo de polarização pode continuar durante muito tempo – até que deixe de acontecer. O aumento da desigualdade de riqueza e distribuição de rendimentos é uma tendência que não pode durar para sempre, irá ser revertida um dia, e, quanto mais durar, mais rápida e mais feroz será essa reversão. Se a sociedade se recusar a responder, a provável consequência é uma revolução. A história ensina-nos, no entanto, que as revoluções não acontecem com frequência. Na maioria das vezes, há uma resposta política ou económica antes que a situação se torne revolucionária.

Uma revolução de que tipo?

Num sistema democrático, a resposta política normalmente é eleger os partidos que se concentram numa redistribuição pacífica da riqueza. A resposta económica, porém, pode ser muito mais incomum e inesperada, já que os mercados e as empresas têm um espectro muito mais amplo de ações possíveis – o eleitor não dá um voto a cada quatro ou cinco anos. Como na economia há muito mais espaço para surpresas, não lhe consigo dar uma solução fácil. Mas pelo menos temos visto durante os últimos dois séculos, que o capitalismo não nos fez o favor de desaparecer – parece ter um talento para a sobrevivência.

Neste contexto, ainda há espaço para as ideias defendidas por Karl Marx, que irá analisar na conferência?

Na realidade, depende. A “ditadura do proletariado” foi uma má ideia desde o início – como todas as ditaduras da história. A teoria de Marx sobre o valor económico foi muito útil para descrever a economia do início da era industrial, mas tornou-se cada vez mais desatualizada ao longo do século XX. Entre outros aspectos, porque subestimou a influência económica das inovações e da tecnologia. Para mim, três conceitos de Marx ainda são válidos e úteis. Primeiro: o materialismo. Como Marx escreveu, “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, o ser social que determina sua consciência” – das Sein bestimmt das Bewusstsein. Ainda é uma boa ferramenta para entender e analisar o que está a acontecer no mundo. Segundo: o método dialético, como mostra a luta de pensamentos, de velhas e novas ideias, e a influência mútua que elas têm uma sobre a outra. A luta entre a sua posição e a minha, entre a tese e a antítese, não será vencida por nenhuma das duas, mas por uma nova, que emerge do conflito, a síntese. E o terceiro mérito de Karl Marx ainda em vigor é a filosofia da mudança. Não tentou encontrar o melhor de todos os mundos, mas procurou as forças que movem as economias e as sociedades. A sociedade nunca está pronta, muda sempre. E nós mudamos com ela.

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