Há dias, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de Regulamento sobre um tema que há muito pedia a sua intervenção: o da propaganda política, em particular no mundo online. A proposta – que surge como reação ao escândalo Cambridge Analytica, ao referendo do Brexit e às recentes declarações da whistleblower Frances Haugen – contém duas medidas fundamentais.
A primeira é uma restrição ao microdirecionamento – um palavrão utilizado para designar a técnica que permite dirigir anúncios específicos a grupos de pessoas relativamente pequenos e homogéneos. Graças a esta técnica, André Ventura pode, querendo, direcionar anúncios com o seu lema “Deus, pátria, família e trabalho” a homens brancos, de meia idade, conservadores e da zona de Moura.
A imposição de limites ao microdirecionamento é uma medida mais equilibrada do que a pura e simples proibição de propaganda política nas redes sociais. Escrevi-o aqui há dois anos: a proibição, para além de ser uma solução desproporcionada para o problema da desinformação eleitoral, prejudica sobretudo os candidatos e partidos mais pequenos.
Em segundo lugar, a proposta vem sujeitar as plataformas online a obrigações de transparência em relação aos anúncios que exibem. Cada anúncio político deve ser claramente identificado como tal e incluir informação sobre as fontes e o montante de financiamento. Nas palavras de Vera Jourová – a vice-presidente da Comissão que apresentou a proposta e que esteve recentemente na Universidade Católica a falar de temas próximos –, “as pessoas devem saber por que motivo veem um anúncio, quem o pagou, quanto foi pago e quais os critérios de microdirecionamento utilizados”.
A proposta, que ainda será discutida pelo Parlamento e pelo Conselho, vai indiscutivelmente no sentido certo. Há cerca de um século, Louis Brandeis, um dos mais conhecidos juízes da história do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, disse que “a luz do sol é o melhor desinfetante”, em alusão metafórica às virtudes da transparência. Aquilo que a proposta da Comissão faz é procurar desinfetar o mundo da propaganda política online, tornando-o mais transparente. Mas podia ter ido mais além. É que, tal como está, a proposta deixará por resolver um dos principais problemas do marketing político direcionado: o da dificuldade do seu escrutínio público.
No meio online, um interveniente político pode dirigir anúncios a um grupo restrito de pessoas, sem que as demais se apercebam desse facto e do conteúdo dos anúncios. Na publicidade tradicional não é assim: os outdoors de campanha e os tempos de antena não só são iguais para todos, como são publicamente visíveis. O que significa que todos – incluindo jornalistas, investigadores e oposição – podem verificar o conteúdo das mensagens difundidas e a respetiva veracidade.
Uma forma de eliminar esta diferença passaria pela criação de um repositório – único e de acesso público – para anúncios de cariz político. Um repositório que podia ser gerido pela própria Comissão, mas que seria alimentado em tempo real pelas várias plataformas com os anúncios que vão exibindo. A criação de um tal repositório universal evitaria a proliferação de repositórios inconsistentes, reduzindo drasticamente os custos associados à investigação de práticas de manipulação eleitoral nas redes.
É claro que é importante que o sujeito de Moura consiga perceber porque é que aquele anúncio de André Ventura lhe apareceu à frente e como é que isso aconteceu. Mas isso não basta. Para se acabar com o problema da inescrutabilidade da propaganda online, é essencial que todos consigam percebê-lo.