Não. Não vou escrever sobre a espécie de alívio que este início de abril nos pode estar a trazer: as esplanadas com pessoas, as pessoas na rua, a rua frequentada, a frequência das aulas. Este ano, que deveria ser diferente do 2020 pandémico, no que a Portugal diz respeito tem sido tão pesado que nem o sol das semanas de Páscoa e pós-Páscoa eliminou a frustração destes tempos de confinamento desconfinado a medo.

Não. Não vou escrever sobre os quinze dias que potencialmente faltam para o regresso das aulas presenciais na minha universidade – e nas demais. Não consigo. A angústia toma conta de mim por tanto querer e tanto recear (será que estamos preparadas/os?).

Sim. Vou escrever sobre a experiência diária de docência num espaço de 10 metros quadrados: os passos, as horas, os stresses, as conquistas, as frustrações, as saudades e os estranhamentos. É um dia na vida de uma mulher comum, professora e em estado de cansaço acumulado.

Este dia é um dos primeiros de abril de 2021. Acordei às 5h00. Tinha dormido pouco mais do que três horas e o sono esvaiu-se. Algo inquieta, deixei-me levar pela nostalgia dos tempos sem pandemia. E voltei a 2019. Não tinha sequer uma memória marcante desse ano, a não ser a chegada aos 40 e a perceção da perda da ideia de juventude. Mas, para desviar o pensamento das novas dores espalhadas um pouco por todo o corpo, da memória mais falível, da flacidez epidérmica e das primeiras rugas, conduzi a minha viagem mental para outro qualquer dia de abril desse ano.

Eram sete e meia da manhã, acordava (maldisposta como sempre), colocava o relógio com a app da contagem dos oito mil passos (exercício diário recomendado pela reumatologista e pela Organização Mundial de Saúde também), tomava banho, engolia o pequeno almoço, verificava a mochila, reunia as chaves, o telemóvel, os óculos de sol e os auscultadores, dava um beijinho de despedida, ligava o carro, preparava a banda sonora da viagem (“People have the power”, da Patti Smith, muitas vezes), deixava que o Captur me conduzisse até à universidade enquanto despertava a voz a berrar o refrão, estacionava, subia umas 40 escadas, entrava no Polo I, cumprimentava quem lá estava, levantava a chave da sala de aula, subia mais umas quantas escadas para chegar ao bar e tomava a primeira dose diária de cafeína concentrada enquanto trocava duas ou três palavras com duas ou três pessoas, caminhava pelos halls da Faculdade de Artes e Letras, cumprimentava e abraçava mais duas ou três colegas, conversava mais dois ou três minutos, enquanto me ia aproximando da sala já no varandim da antiga Parada – outrora praça central da Real Fábrica de Panos – e, cumprimentando as dezenas de estudantes mais ou menos ensonadas/os, entrava na sala, preparava os conteúdos para projetar, cumprimentava todos os membros da turma e continuava a caminhada na sala de aula, onde nunca conseguia ficar sentada mais do que cinco minutos.

O dia tinha começado e já tinha dado mais de dois mil passos, cumprimentado dezenas de pessoas, conversado sobre artigos a escrever, a escola das filhas das minhas amigas, a série que estava a ver na HBO e o baixo nível dos comentários sobre as mudanças da Cristina Ferreira de canal para canal ou do ataque vil às deputadas negras na Assembleia da República, e, claro, da representação deturpada e errante que a maioria dos média faz do interior e das pessoas que o habitam. E o pensamento levava-me a desenhar os sítios, os cheiros, os toques, os sorrisos, as gargalhadas, as lágrimas e os sonhos que tinha em conjunto com tantas outras pessoas.

De volta a 2021 e são horas de levantar. A aula começa daqui a pouco. Acordo (maldisposta, pois há hábitos que não mudo), tomo banho, visto o terceiro fato de treino da semana, tomo o pequeno almoço, maquilho-me (em demasia para disfarçar mais uma noite mal dormida), tomo um super café (abatanado, como passei a dizer na Covilhã), entro no escritório, sento-me na cadeira preta, apoio-me na secretária branca, ligo a câmara (após confirmar que o robe não aparece), abro a sala de aula Zoom – ou Teams – e ali fico horas incontáveis.

A aula está prestes a começar. Qual o número de passos? Não contei. O relógio com a app ficou esquecido desde o dia 15 de janeiro último no hall de entrada. Quantas pessoas cumprimentadas? Uma. Quantas bandas sonoras postas? Zero. Quantas escadas subidas? Zero. As preocupações passaram a ser outras: quantas câmaras ligadas no início da aula? Qual o número de participantes? Quantos alunos têm dificuldade em acompanhar as aulas por falta de equipamento? Quando conseguimos ligar as câmaras todas, partilhar o ecrã – compartilhar a tela –, ter toda a turma preparada para o início da aula, já muitas arrelias resolvemos. Onde? Num espaço de 10 metros quadrados.

O dia avança. É intervalo da aula e nos ecrãs que tenho à minha frente vejo que recebi mais uma dezena de emails (muitos deles com a etiqueta “urgente”), um conjunto de mensagens Messenger, WhatsApp, Instagram e, imagine-se, SMS e até chamadas de voz (tão démodé!). Olho para a lista de afazeres preparada no dia anterior e nenhum daqueles assuntos “urgentes” bate com as minhas antecipações.

Volto à aula com uma espécie de nova angústia acrescida à noite mal dormida e a outros dias muito semelhantes a este. Percebo que a turma precisa conversar, tentar perceber em conjunto o que é ser estudante universitário fechado no quarto da casa dos pais ou num quarto da casa da Covilhã. Mesmo com trabalhos para avançar, decido parar para conversar. Uma decisão boa para o grupo, mas que me enregela de preocupação: “Será que devo?”. Resultado: a aula termina mais tarde, tenho seis alunos/as que me pedem reunião, ponho-os em salas paralelas e converso.

Olho para o relógio e vejo que são 13h20: “Credo! Daqui a pouco tenho a aula da tarde e ainda não almocei”. Corro – como quem diz – do escritório até à cozinha, almoço um almoço que nos veio ter a casa, apressada como se não houvesse amanhã, tomo mais café, lavo os dentes e volto para o escritório de 10 metros quadrados, sento-me na cadeira preta, apoio-me na secretária branca, abro a sala Zoom no ecrã direito e olho para o da esquerda onde vejo os outros 12 emails que, entretanto, chegaram (muitos deles já com respostas e contrarrespostas de pedidos a que ainda não fui capaz de responder), fico mais angustiada, mas lá vamos outra vez.

Nova aula, novos rostos, novas abordagens, novo ralhete por causa das câmaras desligadas, negras tipo lápide, novas mensagens escritas, novas chamadas de voz, novos pedidos de reunião, de revisão e de participação (sempre urgentes). Antes de dar início à aula penso: “Como vou conseguir responder a tudo a tempo?”. Dois minutos de exercícios de respiração (muito mal-executados) e lá me fecho para a aula da tarde.

Três horas e meia depois a aula termina. Mais um conjunto de pedidos de reunião, que atendo na íntegra. São quase sete da tarde. Passos: umas dezenas (não contei); número de pessoas que cumprimentei e abracei (uma, a mesma da manhã); número de conversas sobre a série feminista que ando a ver: zero; minutos de sol e vitamina D: zero; número de bandas sonoras ouvidas e cantadas aos berros em viagem: zero; dores de costas, pulsos e ancas: demasiadas. E penso: “É hora de parar e fazer um pouco de exercício físico.” Mas condeno-me por ter um pensamento insano desses. É que a lista de 15 afazeres que tinha transitado do dia anterior, mais as trinta novas solicitações de hoje tinham de ser despachadas.

Porquê? Porque os sumários têm de ficar preenchidos, as orientações organizadas, os artigos revistos e outros escritos, os pedidos dos alunos respondidos, as atas assinadas, as candidaturas a projetos finalizadas e submetidas, as parcerias contactadas, os links Zoom criados e enviados, as mensagens respondidas, as chamadas retribuídas, etc., etc., etc…

Na loucura, após o jantar, penso que devia caminhar (ou tentar sincronizar duas pernas que estiveram mais de dez horas paradas e na mesma posição), conversar com a família do Norte e ver uns minutos de televisão. “Estás doida, Sónia!” Não consigo, pois há tanta coisa para fazer e parece que o trabalho não me sai das mãos. Por isso, volto ao escritório. Aos meus 10 metros quadrados de vida, à minha cadeira preta, à minha secretária branca, aos meus ecrãs, aos emails, às mensagens urgentes e aos pedidos de apoio.

Sento-me e vou com determinação, ainda que perceba a quase impossibilidade de fazer seja o que for com o mínimo de acuidade. Faço a lista do que está por fazer: o que já vinha da lista do dia anterior, o que acumulei deste dia, o que amanhã será necessário fazer e o mais que irá aparecer. Passos: talvez uns 100 (se tantos, sei lá!); minutos de vitamina D e sol: zero; pessoas vistas em 5D: uma; número de cafés tomados numa bela esplanada: zero; minutos de dolce far niente: zero; número de tarefas para cumprir: enorme; volume do stresse: maior do que o do dia anterior. Decisão: adiar para o fim de semana. “Aí terei tempo”, penso. E faço-o. Tantas vezes. Só hoje, quando me sentei para escrever este texto é que percebi que, além de estar confinada, confinei a maior parte dos meus fins de semana e dos meus períodos de descanso.

Escrever sobre um dia de aulas de teleprofessora é quase tão angustiante como o próprio dia. Este é só um dia de uma mulher comum, que tem como atividade profissional a docência, e que viu o último ano da sua vida através de dois ecrãs de computador. Mesmo que o tenha feito com a maior dedicação que esta profissão exige, a carga tem sido digital e extraordinariamente árdua, tanto física quanto mentalmente.

Tudo num espaço de 10 metros quadrados, com vista para uma espécie de mundo que chega através de dois ecrãs, assentes numa secretária branca, de frente para uma cadeira preta. Um lugar, contudo, onde me encontro regular e virtualmente com dezenas de pessoas reais – especialmente, estudantes – que, ainda que fechadas, estão, tanto quanto eu, em negociação com a humanidade, com a novilíngua, com a distância próxima, com o isolamento intrusivo e com a vida em 10 metros quadrados.