Ser mulher. Ser mulher em Portugal. Ser mulher em Portugal e falar português com sotaque do Brasil. Ser mulher em Portugal, falar português com sotaque do Brasil e viver com medo.

Se tantas histórias, episódios e momentos de discriminação, injustiça e desigualdade que atingem maioritariamente a mulher e, especialmente, a mulher mais vulnerável, já são motivos fortes para que não paremos de assinalar a importância do dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, os relatos que motivam este texto são um acrescento à maior de todas as desigualdades, porque transversal, a de género. São episódios nas vidas de quatro mulheres, recordados a poucos dias de celebrarmos o 8 de março.

1. L

O nome dela é L. e está em Portugal há quase três anos. Tem 22 anos e terminará o curso dentro de poucos meses. Está a cumprir o sonho dos pais e o seu objetivo: ter formação superior e uma vida mais tranquila do que mãe e pai tiveram. É de sorriso fácil, de visão ampla do mundo e humanista. Mas naquela tarde de terça-feira estava triste, visivelmente triste. Quando me apercebi aproximei-me e ofereci ajuda.

A primeira frase de L. foi: “Ninguém me pode ajudar. Só preciso de ir sempre acompanhada para casa.” Senti um arrepio, enquanto L. continuava a contar a sua história de assédio na via pública de uma cidade portuguesa. “Eu corri muito, muito. Ele tinha um carro grande e me acompanhava. Eu estava com muito, muito medo. Consegui chegar perto dos meus amigos. Ele saiu do carro e ainda conseguiu agredir um deles. Foi horrível. É um trauma que ficou comigo. Nunca mais andei sozinha. Tenho medo.”

O relato de L. dá-me vontade de gritar aos que questionam a pertinência de se assinalar o dia 8 de março: “Porque há um número incontável de mulheres que continuam a viver aterrorizadas porque são mulheres e porque são vítimas de agressores impunes.”

2. J

Era um dia chuvoso e J. tinha chegado encharcada e com olhos tão vermelhos como o vermelho da caneta que tinha na mão. Ajudei-a a acomodar-se. Quis relatar-me um episódio claro de xenofobia, que envolvia a sua chegada a Portugal, o apartamento onde iria ficar e o proprietário do imóvel. De tão enervada com a situação, J. pede desculpa e desaba a chorar. O tempo parou ali. Era uma mulher vítima de agressão, cuja causa era: ser mulher brasileira em Portugal.

Minutos depois, J. conta-me que tinha acabado de se mudar para uma casa, da qual foi expulsa no momento em que o proprietário soube que a nova inquilina era de nacionalidade brasileira. Chocada, J. conta que o homem berrou a seguinte alarvidade: “Mulheres como você não as quero nem dadas. Não ficas aqui porque isto não é um bordel.” Num turbilhão emocional intenso, J. ainda tentou dizer ao agressor que estava a estudar e não tinha outra profissão. De nada adiantou. O proprietário expulsou-a do apartamento, quase ao fim da tarde, deixando-a sem abrigo. Só o apoio de pessoas próximas evitou uma noite ao relento de uma mulher num país estrangeiro, maltratada pelo primeiro contacto formal que teve na cidade.

Então porque é que continua a fazer sentido assinalar o dia 8 de março? Porque as histórias de L. e de J. continuam a acontecer. Sim, em Portugal, em pleno século XXI.

3. A

Conheci a A. há dois anos. Tinha chegado a Portugal, vinda do Brasil, há uns dias. Ainda não percebia metade das frases em português europeu. “Vocês falam muito rápido!”, dizia com um sorriso trémulo. A., o marido e as duas filhas instalaram-se numa cidade portuguesa e matricularam as duas crianças na escola mais próxima de casa. Numa das conversas de carona, A. revela a sua tristeza com o país e pede-me que não diga a ninguém por medo de retaliação. “É que, apesar de tudo, nós somos mais felizes aqui.”, frisava.

A. tinha ido a mais uma reunião de encarregados/as de educação da nova escola das filhas. E tinha sido vítima de discriminação pela terceira vez nos últimos meses, precisamente na reunião com os outros pais e mães dos/as colegas das filhas. “Não me deixaram contribuir com nada por não conhecer o país, não me permitem opinar porque dizem que não conheço a escola nem a realidade da cidade e, pior, não me incluem no grupo de WhatsApp, onde se discutem as decisões que são já tomadas antes das reuniões”. Quando perguntei a A. qual seria o motivo, temia a resposta: “Me disseram que não querem ter no mesmo grupo uma mãe brasileira, que não sabem bem que tipo de pessoa e mãe seria.” Aconselhei-a a denunciar. Disse-me imediatamente que não. Temia as retaliações por ser estrangeira.

Porque é que continua a ser necessário assinalarmos o dia 8 de março? Porque as vítimas de discriminação pela nacionalidade, como A., continuam a sofrer.

4. M

Janeiro. A pandemia atingia níveis assustadores em Portugal. Os dias eram curtos e as noites tão longas como o tempo confinado. Numa das muitas viagens digitais, cruzo-me com M., que tinha perdido o sorriso alegre que a caracterizava. Tinha acabado de sair a correr de uma entrevista de trabalho que se tinha transformado em assédio sexual.

M. partilha que o homem que a tinha convocado para uma entrevista de trabalho numa loja da cidade havia alterado o propósito da oferta de emprego logo que ouviu o sotaque de português do Brasil. E relatou: “Eu cheguei e ele logo se aproximou de mim como que se fosse meu familiar ou amigo próximo. Fiquei com medo. Ele quis tocar-me e eu me desviei. Nessa altura ele disse que o emprego que tinha para mim era sexual”. M., chocada, saiu a correr e ainda ouviu do agressor: “Se pensas que te safas em Portugal sem fazeres agrados, estás enganada.” M. tentou denunciar o homem, mas sem sucesso. Por falta de provas, indicaram as autoridades.

Muitos poderiam ser os motivos. Muitas poderiam ser as histórias. Mas L., J., A. e M. têm em comum a sua proveniência, proveniência essa que recebe um carimbo de discriminação, de maus tratos e de desrespeito constantes. Não posso nem vou aceitar que um conjunto de agressores trate desrespeitosamente milhares de mulheres brasileiras que escolhem Portugal para completar os seus estudos, para trabalhar, para viver em segurança, para sonhar, porque as associam a um preconceito.

Caro agressor: 1) as mulheres têm total liberdade de fazer o que querem com os seus corpos e as suas vidas; 2) quando voltar a destratar uma mulher pela sua proveniência, imagine uma filha, uma irmã ou familiares próximos a receber tratamento semelhante; 3) o jugo do preconceito é tão perigoso quanto o perigo de cilindrar a vida de milhares de mulheres apenas porque têm um sotaque diferente do preconceituoso.

Porque é que continua a ser necessário assinalarmos o 8 de março? Se olharmos à nossa volta, encontram-se histórias tão graves – e mais – como as que aqui vos relato pelos olhos de quatro vítimas.