“Dignidade a 10 euros”, artigo no Jornal de Negócios(1) comentando propostas sobre pensões no OE2020 permitiria o comentário fácil de que quem fala assim tem a barriga cheia. Ou de como prevalece a demagogia na abordagem do OE. Talvez seja melhor falar da falta de rigor, ignorância e desonestidade mesmo, para cobrir uma leitura marcada pela opção neoliberal e uma filiação política-ideológica e de classe. Ou será tudo junto. Aliás, música orçamental de fundo do PSD e CDS.

Que diz então o plumitivo? Que “aumentar no máximo em 1,5% as pensões inferiores a 658 euros é a moeda de troca de comunistas (…) para garantir a aprovação do orçamento.” “Que ninguém consegue mudar a vida dos mais pobres de um dia para o outro.” Que “dignificar a vida de alguém não passa por inventar pontualmente aumentos irrisórios e ficar convencido de que a situação melhorou substancialmente.” Seis observações.

  1. O que propõe o jurista para as pensões, incluindo as mais baixas, em 2020? Ou propõe que não haja aumentos, o que se pode deduzir da sua afirmação de “um Governo (PS) sem margem para fazer melhor”? Não esclarece.
  2. Ou o jurista acha que os aumentos devem ocorrer, como propõe o Governo – regras de 2007, de um Governo PS e mantidas religiosamente pelo Governo PSD/CDS? Ou seja, um aumento de 0,7% para as pensões até 877,62 euros, com um mínimo de 1,91 euros, e de 0,24% para as pensões entre os 877,62 e os 2.632,86 euros, com um mínimo de 6,14 euros. Ou seja, quem tenha reformas de 281 euros terá apenas um aumento de 1,97 euros; se for de 800 euros, de 5,60 euros e de 1.500 euros, de 6,14 euros. Não se pronuncia.
  3. O jurista engana-se nas contas sobre a proposta do PCP. Um aumento mínimo de 10 euros para todas as pensões assegura que quanto mais baixa a pensão, maior é o aumento percentual. Numa reforma de 275 euros o aumento com a proposta do PCP é de 3,6%, muito acima dos 0,7% que decorre do mecanismo de atualização anual, e numa reforma de 1.000 o aumento é de 1%, acima dos 0,24%. Uma especial atenção às pensões mais baixas e ao mesmo tempo a valorização de todas.
  4. O jurista oculta o seguinte: (i) que a ser aprovada tal proposta significaria que se soma a outros três aumentos extraordinários em OE anteriores; (ii) que sendo a pensão mínima para pensionistas com mais de 30 anos de descontos 395,57 euros, o PCP propõe a criação, em 2020, de dois novos escalões de valor mínimo das pensões mínimas para quem tem 36 a 40 anos e mais de 40 anos de descontos; (iii) que faz outras propostas que aumentam o rendimento disponível dos reformados.
  5. A grande mistificação: quem afirma que o aumento proposto vai “mudar a vida dos pobres de um dia para o outro”(?!)? Quem fica convencido de que assim “a situação melhorou substancialmente”? Só se for o jurista e os seus amigos, sempre confiantes (há séculos) no poder redentor da esmola.
  6. O grande esquecimento: as baixas reformas são uma realidade de décadas. Refletem a vida de milhares de trabalhadores que foram sujeitos à exploração laboral, aos baixos salários, às discriminações salariais, à subdeclaração de salários, mas também situações de desemprego de longa duração que se traduzem em baixos valores de reforma. Resultado das políticas de direita do PS, PSD e CDS. De facto, dos amigos do jurista.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

(1) António Mota, jurista, «Dignidade a 10 euros», Jornal de Negócios, 20JAN20.