Ainda no que se refere ao debate na Assembleia da República (AR) do Programa de Governo, alguns afloramentos políticos poderão ter ganho importância q.b..
Em primeiro lugar a rejeição da moção de censura do Chega fez, desde logo, retomar uma imagem de união do conjunto da esquerda contra a extrema-direita, por mera questão de princípio. Por sua vez, os restantes partidos da direita parlamentar optaram por uma previsível abstenção, reforçando a linha divisória entre a extrema-direita populista e a direita tradicional democrática.
Ainda relativamente ao Chega será plausível, como em alguns comentários se vem destacando, que a atuação em termos de magistério do Presidente da AR – que assumiu um confronto acesso com o Chega – tenha subjacente a ideia de valorizar este partido como indicativo chefe na prática da Oposição de direita, só porque tal dará jeito ao PS?
Não creio nem defendo, até porque durante o debate foi curioso ouvir muito de passagem – mas o suficiente para ser notado – o primeiro-ministro a referir que o futuro é o Estado Social em detrimento do liberalismo. Como que a equacionar (com mais ou menos vontade, não sei) um debate ideológico que, a meu ver, interessa aprofundar, designadamente em termos da dimensão do Estado que as propostas da Iniciativa Liberal (IL) configuram, já que o pilar do Estado Social forte é numa economia de mercado uma espécie de dogma para os modelos de socialismo democrático ou sociais-democratas genuínos.
Tenhamos, contudo, presente que, no imediato, o Governo, em articulação com o sistema financeiro – num previsível cenário de abrandamento global que as condições exógenas determinam – deve assegurar maior empenhamento, desde já no crescimento económico sustentado das empresas privadas viáveis, tidas como os agentes motores da economia que geram riqueza e competitividade.
Assim, no próximo Orçamento do Estado e no seguinte, dentro do “bolo disponível”, identifiquem-se com clareza os estímulos com impacto sobre as empresas e criem-se boas expectativas fundadas, sabendo nós, contudo, da crónica debilidade em média (há felizmente excepções) do tecido empresarial, porque sub-dimensionado, com níveis baixos de produtividade, pouco aberto à cooperação e sempre que possível de “mão estendida ao Estado”.
Mas é urgente que o crescimento económico permita mesmo a ultrapassagem – com o apoio imediato dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência de alguns países que, recentemente, passaram à nossa frente – e não apenas uma convergência com a média da União Europeia. Só consolidado no país o início do patamar de crescimento sustentado poder-se-á melhor discutir modelos que asseguram com solidez a defesa do Estado Social, evitando no domínio do razoável o recurso ao endividamento, situação que, via pressuposto das contas equilibradas, o Governo pretende salvaguardar.
No entanto, é também um facto que, em contraponto às ideias do Governo maioritário, vem ganhando alguma força a ideia do liberalismo que a IL – apologista de um forte crescimento económico – protagoniza e tem divulgado, ainda que de uma forma insuficiente, num país que estruturalmente vê no Estado um pilar para a salvaguarda em momentos críticos. Em suma, qual a dimensão social no projecto dos liberais? Que cedências, em nome de uma alternativa credível, farão ao líder do centro-direita, o PSD, no âmbito do seu purismo ideológico?
Mais. Há também algo que deve ser corrigido no diálogo político corrente: nem os liberais podem atacar o Governo dando a entender que este representa o socialismo num sentido ortodoxo (como inimigo da iniciativa privada e logo defensor de um estatismo burocrático), nem o Governo, e o PS, podem dizer de uma forma absoluta que o projecto liberal representa a inexistência completa do Estado Social.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.