É fácil amar Lisboa, mas não é preciso só amá-la. É preciso compreendê-la. E o paradoxo que vive Lisboa hoje é que quem deveria conhecê-la melhor – em particular, o poder político que a governa – é quem demonstra menos interesse em compreendê-la.

Que Lisboa é fácil de ser amada explica-se brevemente de maneira a demonstrar que sempre foi assim. Quando os romanos aqui chegaram, pegaram no nome fenício que a cidade já tinha, Olissippo, e decidiram acrescentar mais dois da sua lavra: Felicitas Iulia. O primeiro nome da cidade ficou assim sendo, simplesmente, felicidade.

Percebe-se bem porquê: mais de dois mil anos depois, as pessoas continuam a chegar a esta cidade das colinas à beira-Tejo e ouvem-se a si mesmas dizer: eu era capaz de ser feliz aqui. Não há quase quem o não faça, o que significa que o número potencial de interessados a viver em Lisboa, a comprar casa em Lisboa, a trabalhar em Lisboa ou a trabalhar a partir de Lisboa, ultrapassa em muito aquilo que até os seus governantes estão capazes de conceber.

Mas voltando aos romanos, há também outra coisa que eles fizeram: aproveitando-se da semelhança entre o nome fenício da cidade Olisippo e o do herói grego do poema de Homero, Ulisses, começaram a dizer a toda a gente que Lisboa fora fundada por uma personagem lendária que, mesmo na Antiguidade, toda a gente conhecia, e que no Renascimento voltou a ser aproveitada pelos nossos humanistas para identificar Lisboa com uma narrativa: a da capacidade de dialogar, imaginar e inventar soluções.

Essa parte da história tem estado completamente ausente da forma de encarar Lisboa, e isso é um problema não só para a capital, mas também para Portugal como um todo. Deixem-me dar um exemplo à primeira vista inteiramente local para que se comece a perceber o que quero dizer.

O Terreiro do Paço — na verdade, no seu nome oficial, Praça do Comércio — é por todos identificado com o poder central, a burocracia do Estado e o Ministério das Finanças. Não há município em Portugal, nem organismo público, que não se queixe de estar à espera de uma palavra do “Terreiro do Paço”. Pouca gente sabe que o plano original, gizado para esta praça depois do Terramoto de 1755, seria fazer ali a Biblioteca Pública do Reino, ou seja, um lugar aberto a todos, em vez de fechado sobre si mesmo.

Ora bem, dois governos sucessivos decidiram tirar dali os ministérios para os levar para o antigo edifício-sede da Caixa Geral de Depósitos. Para levar para lá o quê? Ao que parece, novos ministérios. Talvez, algum dia, hotéis de charme, como se a cidade tivesse poucos. Mas o Governo não parece querer comunicar sobre este assunto; e o Presidente da Câmara Municipal não parece interessado em questionar o Governo nem iniciar um debate sobre o tema, apesar de vinculado a isso por uma resolução da vereação (que apresentei em nome do LIVRE, e que foi votada unanimemente).

Eu sei que, à primeira vista, isto parece pequeno e simbólico. Mas é um engano: é grande e estratégico. Se a Praça por todos associada ao poder central passasse a ser uma Praça da Cidadania, da Cultura e do Conhecimento, isso constituiria um sinal poderoso de para onde queremos ir e que tipo de país queremos ser. Pois o tipo de país que Portugal quer ser, que papel quer desempenhar na Europa e na globalização, passa necessariamente pelo motor que as suas cidades, e Lisboa em Portugal, podem ser para o modelo de desenvolvimento futuro que coletivamente decidirmos escolher.

O modelo que proponho é este: Portugal deve procurar ser uma economia do conhecimento e da descarbonização, de alto valor acrescentado, em que o dinamismo natural que a nós é atraído esteja ao serviço de assegurar dignidade para todos. Esta é uma tarefa para uma década e até para uma geração, que deve nortear as escolhas que fizermos sobre os temas mais cruciais da nossa governação, e para o qual as cidades, e Lisboa em particular, devem contribuir — e de que todos, incluindo as áreas menos densamente povoadas, podemos beneficiar.

A primeira parte é mais evidente. Está claro para todos, hoje, que Lisboa é uma cidade atrativa. Ora porque assegura tranquilidade a quem vem de cidades inseguras ou países em conflito; ora porque tem uma vida cultural intensa; ora porque garantida conectividades a vários continentes e fusos horários, embora firmemente ancorada no projeto europeu e no mercado interno da União Europeia, Lisboa tem sido uma escolha evidente quando vista de fora. Quando vista de dentro, porém, há muito de estrutural que ficou por fazer e problemas que se avolumam perante a negligência de quem deveria estar mais atento e que mais ferramentas tem para antecipar, evitar problemas e trazer soluções.

É para todos evidente que a qualidade de vida na cidade está a decair, e que isso é desesperador, quando o potencial de Lisboa é tão grande. O atual executivo fez a escolha, bem cedo no seu mandato, de não gerir o trânsito com medo de ser criticado: em resultado, o trânsito está pior do que nunca, os problemas de saúde devidos à poluição são frequentes, os atropelamentos e a insegurança rodoviária envergonham-nos como capital europeia.

Acima de tudo, porém, é na crise na habitação que o atual desnorte na cidade está mais evidente. Basta pôr dois lisboetas, de longa data ou recém-chegados, a discutir os preços das casas nesta cidade para se perceber como esta dinâmica é incontrolável. É possível que a conversa fique rapidamente cheia de dados que nos deixam claro como a cidade deixou de ser acessível às pessoas comuns: a minha observação mais recente foi a de uma montra de uma imobiliária que, além de mostrar vários anúncios de apartamentos a dois ou três milhões de euros, mais próprios dos preços de Manhattan, tinha como oferta mais barata um apartamento a 750 mil euros com apenas um quarto, uma casa de banho, uma kitchenette e 72m2 de área…

Isto não é natural; é negligência. Não é só a cidade a ser dinâmica; é ninguém se estar a preocupar de qual é, afinal, o lugar dos cidadãos e da sua dignidade. Não é só Lisboa ser atrativa; Viena também é atrativa, mas tem 60% de habitação pública de qualidade para que os vienenses possam continuar a lá viver.

É, pois, possível permitir que Lisboa continue a ser dinâmica, e ganhe até renovado e redobrado dinamismo, sem deixar de garantir que todas as pessoas que aqui vivem e escolhem tentar ser felizes, tenham um limiar comum de dignidade que não deixa ninguém de fora.

É possível taxar as externalidades negativas da concentração no segmento habitacional de luxo e dirigir esses fundos para a emergência dos novos sem-abrigo, com trabalho mas sem teto; para o apoio à compra de casa própria dos jovens e da classe média; para o combate à descaracterização de bairros, à perda de comércio relevante para a vida local, à saída de coletividades e associações. É possível construir novos bairros de tipologia mista para todo o tipo de bolsas, apoiar novas cooperativas de habitação e garantir que as novas casas em Lisboa não são só para milionários absentistas.

É possível dotar a cidade de sistemas inovadores de recolha de lixo, nos bairros em que isso é possível, para permitir a concentração de recolha manual (apenas 900 cantoneiros que recolhem em média diária, cada um, uma tonelada do nosso lixo!) nos bairros onde a situação é mais crítica. É possível lavar as ruas mais vezes, e fazê-lo com água aproveitada das chuvas.

É possível desafiar a Carris a criar um sistema de transporte escolar (chamo-lhe “os amarelinhos”, por comparação com os amarelos da Carris) para ajudar os pais e mães a não usar tanto o carro individual; é possível criar mais corredores bus e ciclovias. É possível acalmar o trânsito dentro dos bairros e evitar mortes trágicas.

É possível, com tudo isso, afirmar Lisboa como um centro de conhecimento e debate na Europa, fazer da sua praça central um exemplo de abertura ao país e ao mundo, começando pelos seus próprios cidadãos. Tal como poderíamos ter evitado os erros do turismo de massas em Barcelona, ainda vamos a tempo de evitar os erros de uma cidade cortada ao meio entre ricos e pobres como São Francisco.

Não só é possível, como não é sequer difícil: Lisboa tem os recursos materiais e humanos; o talento e a diversidade, e até uma Câmara Municipal com orçamento como nunca teve. O que falta é visão para que esta cidade, a que um dia chamaram “felicidade”, seja acima de tudo uma capital do dinamismo e da dignidade. Sem essa visão, nada feito, e a falta de compreensão poderá acabar, para muitos, em desamor.