Existe uma série de mitos e de ideias feitas associadas à adopção. Talvez uma das mais nocivas seja a de que a adopção das crianças mais velhas é mais complicada do que a das crianças mais novas. Estes mitos explicam em parte o desfasamento que existe entre as pretensões dos candidatos e o perfil das crianças que podem ser adoptadas.

A 31 de Dezembro de 2020, o número de candidaturas a aguardar proposta era seis vezes superior ao número de crianças em situação de adoptabilidade. Contudo, 70% dos candidatos ambicionava adoptar crianças dos 0 aos 3 anos (apenas 25% do total de crianças). Apesar de 60 % das crianças com a sentença de adoptabilidade ter 7 anos ou mais (a maioria tem dos 10 anos para cima), poucos são os candidatos que optam por esta faixa etária, por considerarem que estas vão ser adopções mais difíceis ou por quererem duplicar a parentalidade biológica. Para as crianças dos 13 aos 15 anos só há 0,2% de propostas.

Não existem adopções fáceis (pelo menos do ponto de vista das crianças, que têm de se adaptar a uma vida nova com uma ou duas pessoas que até recentemente lhes eram estranhas). Os três exemplos que se seguem – existem bem mais – focam-se na faixa etária que os candidatos preferem (dos 0 aos 3 anos).

“Para mim, as questões na adopção são semelhantes, independentemente da idade”, afirma a Filipa, mãe da Daniela. “Ela foi viver para uma instituição quando tinha apenas um mês de vida, e foi adoptada com 2 anos e meio. Li muito. Muito mesmo. Nos meses de licença, eu mal dormia. Três, quatro da manhã e lia. Sobre educação, sobre bebés, sobre emoções, sobre crianças adoptadas… Ela chorava frequentemente, nunca queria ficar sozinha. Teria sido mais fácil com uma criança mais velha, pois esta percebe que está numa família e é possível conversar-se.

“A Daniela não sabia onde estava quando acordava da sesta, não percebia que aquela era a sua família, não sabia o que era um pai ou uma mãe. Também não tinha qualquer referência masculina na vida dela, o que causou algum constrangimento ao pai, pois rejeitava por completo a figura paterna. Demorámos até cá chegar, mas agora está tudo mais calmo. Ainda assim, a Daniela tem uma personalidade vincada, é muito teimosa, por vezes faz birras de vinte minutos”.

O Filipe foi entregue para adopção à nascença, passou três meses no hospital de onde saiu para ir viver para uma instituição. Foi viver com a sua nova família aos 17 meses. A sua mãe, a Sofia, explica como a adaptação foi muito difícil.

“Ele nunca tinha saído à rua. Naquele tempo todo nunca ninguém o tinha levado a passear. A única vez que saiu foi para levar uma vacina. Só me disseram que adorava livros desde bebé e que comia de tudo. Não era bem assim, estranhou os sabores, só comia o que reconhecia, banana, iogurte, bolacha Maria. Houve dias muito difíceis, ficava numa espiral de grito e de choro, e era muito difícil de controlar. A resistência à frustração era 0.

“Actualmente, tem 6 anos e meio e está muito melhor, é uma criança muito meiga e doce, tive muita sorte. Continua a não gostar de ser contrariado e faz muitas birras. Creio que terá sempre dificuldades a lidar com a frustração, se calhar faz parte de quem ele é. Sinto que as dificuldades que temos são parecidas com as das crianças que são adoptadas mais tarde, a única vantagem é que temos mais tempo para criar uma relação”.

Os dois irmãos, o Francisco e o Guilherme, foram, tal como o Filipe, directamente do hospital para uma instituição, tendo sido adoptados com 1 ano e com 2. Actualmente, têm 5 e 6 anos, e a Margarida, a sua mãe, conta como os dois irmãos se integraram bem.

“São saudáveis, recuperaram muito bem de uma série de mazelas, permanecem apenas dificuldades ao nível da motricidade fina. Mas temos ainda de os ajudar muito a regularem-se emocionalmente. O mais novo pede muita atenção, precisa de estar sempre connosco e, quando está zangado, levanta-me a mão. Se fica frustrado atira tudo para o ar. O mais velho é mais tranquilo, mas tem tendência para meter tudo para dentro, não fala, não comunica, pode ser complicado. Agora, no geral, tive muita sorte. São carinhosos, o mais novo é muito extrovertido, é um sedutor”.

Estes três testemunhos fariam sorrir os pais que adoptam crianças mais velhas e que reconhecem nos comportamentos mencionados algumas das características dos seus filhos. Johanne Lemieux, em “La Normalité Adoptive”, considera que estas fazem parte da “normalidade adoptiva”.

Segundo a autora, a maioria das crianças adoptadas apresenta alguns ou vários dos seguintes comportamentos nos anos que se seguem à adopção: medos; dificuldade em lidar com as mudanças, pesadelos e terrores nocturnos; dificuldade em lidar com a frustração e em gerir as suas emoções; dificuldade em lidar com os colegas na escola e em reconhecer figuras de autoridade; má gestão do stress; dificuldade com as transições entre tarefas; baixa autoestima.

Nalguns casos, pode ainda haver comportamentos violentos ou sexualizados. Por vezes, as crianças vão manifestando vários destes comportamentos ao mesmo tempo, o que pode ser cansativo para os pais. Na grande maioria dos casos, a intensidade das dificuldades dissipa-se com o passar do tempo e a estabilidade de uma família.

Como os testemunhos dos pais entrevistados ajudam a mostrar, a idade da criança é apenas um factor entre outros, dos quais fazem parte o tempo de institucionalização da criança, a qualidade da casa de acolhimento, o número de cuidadores por criança e a sua capacidade de terem calma e paciência, a previsibilidade dos seus turnos, o modo como a adopção é preparada com a criança e o seu desejo e expectativas em relação a uma família.

Quando a criança é retirada à família com um baixo nível de stress, quando recebe bons cuidados numa casa de acolhimento com poucas crianças, sendo bem preparada para a adopção, e quando a transição para a família é feita com cuidado e a criança encontra pais igualmente bem preparados, então ela pode adaptar-se com mais facilidade.

Talvez se possa afirmar que, dentro do conjunto das crianças que foram adoptadas (independentemente da sua idade), existe uma minoria que tem muitas dificuldades, que serão difíceis de ultrapassar e que exigirão pais muito atentos, pacientes e com uma enorme capacidade de adiar a gratificação parental, centrando-se nas necessidades da criança.

Por exemplo, a Carolina foi adoptada com 5 anos e meio. A sua mãe, a Madalena, conta como “no início havia muitas birras, mas essa não foi a maior dificuldade. Ao final de uns meses, já a adopção tinha sido decretada, entrei no quarto e vi a Carolina a brincar de uma forma sexualizada com os peluches. Percebemos que era um caso de abuso sexual, e desde então tem sido difícil controlar os seus comportamentos sexualizados, que por vezes surgem em público. Temos de estar sempre com ela, porque receamos que se aproveitem e lhe façam mal. Não tem sido nada fácil”.

Em Portugal, não existem dados a este respeito, mas no Reino Unido e nos EUA sabe-se que o abuso sexual é um dos motivos que está na origem de uma percentagem elevada de interrupções na adopção, por ser difícil aos pais lidar com o tema e, sobretudo, pela ausência de equipas de apoio psicológico especializado que estejam disponíveis para apoiar a família, o que cria situações de desesperança.

Existe ainda uma minoria de crianças que se adapta muito rapidamente e sem problemas, apresentando apenas dificuldades ao longo da vida a lidar com mudanças, com a intimidade e com a perda.

O Pedro e o Jorge contam: “Candidatámo-nos logo a uma criança mais velha. Pareceu-nos que estaríamos a fazer um match entre o nosso projecto de abraçar a parentalidade e a capacidade de dar a uma criança a família de que ela precisa. Nunca nos passou pela cabeça que uma criança mais velha viesse com mais problemas, pensámos, pelo contrário, que uma criança mais crescida, com problemas, também teria maior capacidade para lidar com eles. Isto foi uma atitude um bocadinho ingénua, porque de facto a adopção tem as suas especificidades. Agora o Daniel é um miúdo maravilhoso, super bem-disposto, brincalhão, muito inteligente. Temos de lhe dar a estabilidade emocional e intelectual necessária para que possa crescer. É esse o nosso objectivo”.

A grande maioria das crianças em situação de adoptabilidade fica no meio dos dois extremos mencionados, não sendo nem demasiado fácil nem muito difícil, podendo ter ao longo da vida dificuldade a descobrir a sua identidade, dificuldades de aprendizagem ou de regulação emocional.

Entre os factores positivos da adopção tardia, encontra-se o facto de uma criança mais crescida ter consciência da sua história e do seu passado, lembrando-se dos motivos pelos quais foi retirada da família, o que muitas vezes torna menos complicado lidar com a ideia de adopção.

As crianças mais velhas têm algum grau de autonomia, o que ajuda no dia-a-dia durante o período de integração e, com o passar do tempo, tornam-se bons aliados, com quem é possível conversar sobre a origem das dificuldades, sendo mais fácil encontrar soluções. Muitas crianças mais velhas têm lembranças do dia em que foram para casa dos seus pais e de como gostaram de ter um quarto só para si. O desejo de pertencerem a uma família a que possam chamar de sua leva muitas crianças e jovens a fazerem um enorme esforço para se adaptarem, um esforço que é reconhecido e valorizado pelos seus pais.

Se a idade da criança não protege os futuros pais de eventuais dificuldades, em que poderão estes pensar quando tomam a sua decisão? Talvez fosse útil os candidatos concentrarem-se na criança e na ideia de que lhe estão a dar uma oportunidade de normalidade que de outro modo esta não teria. A idade de uma criança não é um motivo para que esta permaneça numa instituição. Pelo contrário, quanto maiores as feridas, mais esforço devia haver por parte da sociedade e de cada candidato para apoiar a criança, integrando-a bem numa família.

Em Portugal, a adopção só pode ter lugar se as crianças tiverem menos de 15 anos quando o processo de adopção dá entrada no tribunal, ou até aos 18 anos, desde que confiadas aos adoptantes antes dos 15 ou caso sejam filhas do cônjuge do adoptante.

A lei parece ignorar o modo como o número de adolescentes em casas de acolhimento e de autonomia tem vindo a aumentar desde 2015. De acordo com o relatório CASA, de 1 de Novembro de 2019, “aproximadamente três em quatro crianças em situação de acolhimento tinha 12 e mais anos”. Algumas delas têm medidas de adoptabilidade que não são executadas, dada a aproximação do prazo legal e a ausência de famílias disponíveis, o que leva a que a adopção deixe de ser uma possibilidade. Em 2019, o plano de vida de autonomização foi definido para 1838 jovens entre os 15 e os 20 anos. Muitos acabam por regressar a casa dos seus pais biológicos.

Autores como A. Varela justificam a regra da idade da adopção com a ideia de que, “só assim abrangendo o período da infância e o começo da adolescência em que o menor mais necessita de um ambiente familiar são no desenvolvimento da sua personalidade, a adopção assume real interesse social.” (ver João de Matos A. Varela, “Direito da Família”. Lisboa: Petrony, 1999, p.131). Eu diria o contrário, que aqueles que mais sofreram merecem ter a certeza do apoio incondicional de uma família ao longo da vida.

Olhamos muitas vezes para os comportamentos difíceis das crianças, mas raramente nos debruçamos sobre o modo como a sociedade contribui para que estes se perpetuem. Precisamos de criar estruturas de apoio para as famílias que adoptam, de assegurar que as crianças e os jovens que foram adoptados, bem como os seus pais, recebem apoio psicológico de qualidade, de saber encontrar escolas de dimensão adequada, e de aumentar a idade legal da adopção para que a sentença não chegue demasiado tarde (como sucedeu em 23 casos em 2019, que permanecerão entregues ao Estado até à sua independência).

As famílias que adoptam, como diz a Carmo, que foi adoptada aos 12 anos e tem agora 21, “têm de ser mais valentes, tal como são os seus filhos”. E a sociedade à sua volta, acrescento eu, tem de as saber ajudar, alargando a idade da adopção, e criando programas específicos – como existem no Brasil, nos EUA, na Austrália, entre outros países – que ajudem os candidatos a fazer o caminho até à adopção tardia.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Maria Sequeira Mendes assina este texto na qualidade de Autora do ensaio “Adopção tardia” da Fundação Francisco Manuel dos Santos.