Os direitos fundamentais das pessoas não estão escritos nas estrelas. Eles são instrumentos jurídicos de proteção de bens que as pessoas consideram muito valiosos, como a vida, a integridade física, a privacidade, as liberdades ou a propriedade.
Por isso, porque o mundo é composto de mudança, os direitos fundamentais das pessoas vão mudando também. Transformam-se à medida que a nossa pauta valorativa evolui, mas sobretudo à medida que vão surgindo novas ameaças para esses bens.
Nos últimos anos, quase todos os novos direitos que foram sendo reconhecidos como tal constituem respostas a novas ameaças tecnológicas. O direito à identidade genética é uma resposta à possibilidade de clonagem humana, tal como o direito ao esquecimento responde à inesgotável capacidade do Google para desenterrar o passado das pessoas, impedindo-as de viver em paz no presente. Os próprios direitos fundamentais mais antigos tiveram de se adaptar às novas tecnologias. O sigilo da correspondência, que foi desenhado a pensar em cartas escritas a tinta permanente dentro de envelopes selados, protege hoje os nossos segredos escritos à pressa nas SMS e nas mensagens de WhatsApp.
Era por isso inevitável que, mais tarde ou mais cedo, se aprovasse um catálogo que sistematizasse os novos direitos de que as pessoas precisam para viver dignamente na era digital em que todos estamos imersos. Defendi aqui nesta coluna, em 2017, a elaboração de uma declaração de direitos com esse teor.
Foi por isso com algum entusiasmo que vi publicada a Lei nº 27/2021, que aprovou a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos da Era Digital. O nome talvez seja demasiado pomposo para uma simples lei, mas a verdade é que – ao abrigo da denominada “cláusula aberta” do artigo 16º da Constituição – o Parlamento pode alargar o catálogo de direitos fundamentais que efetivamente beneficiam de proteção constitucional.
Acontece que até “no melhor pano cai a nódoa” – e a nódoa aqui é o artigo 6º desta Carta, que tem por epígrafe “direito à proteção contra a desinformação”. O tema de que trata o artigo é essencialmente o das “fake news”, que é um problema que deve ser tomado muito a sério, mas que é também extremamente delicado do ponto de vista de liberdade de expressão.
Um pouco de cultura histórica teria aconselhado o legislador a não utilizar na redação do referido artigo 6º a mesma ideia-força que estava presente no parágrafo 2º do artigo 8º da Constituição de 1933, com os resultados conhecidos. No tempo da outra senhora, pretendia-se “impedir (…) a perversão da opinião pública na sua função de força social, e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos”. Agora o objetivo é “proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas” que querem “enganar deliberadamente o público”, em termos suscetíveis de “causar prejuízo público”.
Não julgo que exista risco imediato de uma nova censura prévia ou que a ERC se vá transfigurar no lápis azul da III República. Mas a eterna história de todas as censuras é esta: proteger as pessoas daquilo que lhes faz mal ler, ver ou ouvir. É para o bem delas. Ainda que o não queiram, têm o direito a ser protegidas.
É pena que só se tenha falado da Carta por causa disto. É o problema das nódoas. Por muito boa que seja a qualidade do pano, só a nódoa salta à vista!