Eis os factos que resumem as eleições de 24 de Janeiro e que fazem despertar forte regozijo nuns ou desespero e irritação noutros, numa época pródiga em militâncias emocionais.

Estaremos a entrar numa era de reconfiguração político-partidária em Portugal? Embora a elevada percentagem de abstenção nestas eleições recomende que evitemos extrapolações abusivas, existem sinais que têm de ser valorizados, pois muitos deles nem são novos.

Uma larga percentagem de portugueses continua a sentir-se marginalizada por não encontrar condições favoráveis à realização dos seus projectos familiares e profissionais fora dos centros urbanos do litoral. Reduzidos a escassas ofertas de emprego e perante dificuldades burocráticas que esmagam a iniciativa empresarial, o escape para o litoral é demasiadas vezes mais uma imposição do que uma escolha. Soma-se aí a débil oferta de serviços de saúde, educação e formação, rede de transportes, e até cultural, a que as populações estão reduzidas.

Ainda que possa soar arcaico aplicar a velha dicotomia “eleitorado rural vs eleitorado urbano” ao comportamento eleitoral, a verdade é que esta continua pertinente, sobretudo porque os vícios do regime centralista teimam em acentuar esses contrastes. E a verdade é que um incêndio em pleno Chiado será sempre mais mediatizado e lamentado do que as dezenas de milhares de hectares que ardem anualmente por todo o território nacional.

Para além dos constrangimentos materiais, existem as naturais diferenças territoriais enraizadas no domínio dos valores. Por um lado, significativa parte do eleitorado de regiões do interior identifica-se com propostas de teor patriótico que priorizam as necessidades comunitárias e a identidade local e, por outro lado, o eleitorado urbano, geralmente desenraizado e socialmente desvinculado, apoia preferencialmente candidaturas do sistema ou propostas progressistas e liberais. Foi entre este último eleitorado que Ana Gomes recuperou vantagem face a André Ventura, e Tiago Mayan colheu os seus melhores resultados.

Embora as grandes cidades alinhem preferencialmente por candidatos que apresentam propostas mais “cosmopolitas”, existem contrastes entre o eleitorado das grandes avenidas e o eleitorado que subsiste no ambiente balcanizado das periferias urbanas. É nesses concelhos que o centrão social-democrata é cada vez menos apelativo e os partidos da extrema-esquerda vão ficando obsoletos.

Nem uns nem outros respondem às ansiedades de uma população empobrecida que divide a sua rotina diária entre escassos metros quadrados da sua habitação e as viagens em transportes sobrelotados, tudo isto em condições de crescente insegurança. É assim previsível que aí cresça o voto anti-sistémico.

Os protagonistas do rescaldo eleitoral foram Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura e existe pelo menos uma característica que os une e que foi decerto um dos trunfos decisivos de ambos: o carisma popular. Qualquer que seja a futura composição do Parlamento, tanto os agentes políticos em risco de extinção como os agentes com perspectivas de crescimento deverão aprender definitivamente que não é possível sustentar projectos políticos apelativos baseados no autismo teórico ou na alienação do eleitorado real.

É ainda pouco recomendável traçar linhas vermelhas no campo das ideias, pois isso é um claro sinal de fuga a um debate civilizado que dignifique todos os intervenientes. A ida às urnas não conhece linhas vermelhas e os eleitores não toleram repreensões paternalistas, nem condescendência por parte de iluminados que aspiram a reprimir as suas preferências.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.