Marcha de uma desalinhada
Depois de, inicialmente, ter sido dito que a pandemia não chegava a Portugal;
Depois de, a seguir, ter sido aconselhado a não usarmos as máscaras que agora são obrigatórias;
Depois de termos sido confinados em casa, durante meses, soterrados em sucessivos e, por vezes, contraditórios diplomas legais;
Depois de, no Verão, nos ter sido anunciado o alegado “milagre” de Portugal e de termos sido apresentados como exemplo;
Depois de, afinal, a realidade ter demonstrado que não existia qualquer milagre, antes aumentando sucessivamente o número de mortes;
Depois de confinamentos sem suporte legal, que apenas nos vedavam o lazer e a circulação, e sem que se visse uma qualquer estratégia de combate à pandemia por parte de quem nos governa;
Eis que a principal solução que nos é imposta, anúncios de vacinas à parte, é uma nova declaração do estado de emergência, com meia hora de vacatio legis, enquanto nos falam em “restrições preventivas”.
Por ora, pelos vistos, não podemos fazer grande coisa, excepto trabalhar, incluindo andar em transportes públicos com distâncias pouco recomendáveis, nas áreas e actividades em que ainda é possível fazê-lo, e ficar em casa. Aparentemente, neste país, o vírus é noctívago e ataca os que tentam cometer a ousadia de comprar uma garrafa de vinho no supermercado depois das 20h00 ou que passeiam ao fim de semana.
Enquanto mandam vigiar as fronteiras dos concelhos por estrada, esquecem-se, por exemplo, que muitos dos agentes de autoridade o fazem sem a dita máscara ou ignoram que as aglomerações de jovens ocorrem, bastas vezes, à porta das escolas ou de bares.
No mesmo tempo que se estabelecem no papel limitações aos direitos fundamentais, por exemplo, assistimos aos serviços de urgência em verdadeiro estado de sítio, sem o dito distanciamento de camas que nos impõem a nós.
Não sou negacionista. Reconheço, até por estar em grupos de risco, a gravidade do que se passa e o que temos que fazer para conter os estragos que são inegáveis, seja pelas vítimas, seja pela economia.
O que não consigo perceber é a desfaçatez de quem nos diz para fazer algo e o seu oposto, com o mesmo ar imperturbável, enquanto se perdem vidas e postos de trabalho. O que não consigo também perceber é como é que este vírus destrói muito mais do que as mortes que se anunciam todos os dias e não há quem pense que terá de haver vida para além da Covid.
Sei que estou quase sozinha na minha perplexidade, entre os que cumprem acriticamente o que lhes é determinado, ainda que inconstitucional, e os que ignoram todas as recomendações.
Estou, porém, habituada a estar desalinhada e, dizem, a solidão nos dias que correm é o mais saudável. Até ao dia em que tudo isto se torne insuportável. Ele chegará. Às vezes, a emergência maior é saber resistir.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.