Eram 20h10. Noite de eleições presidenciais. Não consegui ver nem mais um segundo de dados, de resultados, de análises, de debates e de comentários feitos entre homens sobre, essencialmente, dois homens: o reeleito Marcelo Rebelo de Sousa e o leviatã em ascensão André Ventura (AV). Fechei-me no escritório a ouvir Benjamin Clementine e a ler Grada Kilomba, num misto de revolta e tristeza.

E ali fiquei. Enquanto atenuava a dor, geria a incredulidade e tentava racionalizar a revolta, procurava que a minha mente compreendesse porque havia mais de 500 mil pessoas no meu país que tinham dado o seu voto e a sua confiança a uma personagem que havia dito e protagonizado um conjunto de alarvidades e ofensas, com desrespeito absoluto pelos mais desfavorecidos, pelas minorias, em especial, pelas comunidades ciganas, pela comunidade LGBTQ+, em suma, pela constituição da República Portuguesa. Queria muito entender. Não estava a conseguir.

Eram 20h30. Voltei à sala. Vi que ainda não se havia desfeito a dúvida de AV ter ficado em 2º ou em 3º lugar. E o nome de Ana Gomes só aparecia como sua direta competidora, o que me enervava ainda mais. E continuavam os painéis de comentadores. Perguntei: “Mas será que só sou eu que vejo que, na noite de eleições presidenciais, há mais mulheres candidatas do que mulheres comentadoras?”. Não fosse a exceção de Manuela Ferreira Leite e teríamos os melhores estúdios, a melhor tecnologia, os melhores pivôs e tudo o mais com o letreiro à porta: “Mulher não entra!”. Mas esta é mais uma discussão que devemos suscitar noutros momentos, não deixando de dar, contudo, nota negativa ao serviço público de televisão.

Eram 20h45. Voltei ao escritório. A angústia tinha tomado conta de mim. “Mas porquê?”. Sem respostas, liguei para a família. “Como é possível que jovens da minha idade tenham votado naquela pessoa? Que horror! Tenho vergonha!”, ouvi desabafar do outro lado. Enquanto tios/as e avós tentavam dissertar sobre os motivos de estarmos a testemunhar a subida da extrema-direita em Portugal, ouvia da sala uma ameaça explícita de AV sobre o país e os futuros governos, antecipando uma impossibilidade de formação de qualquer governo em Portugal sem o apoio do partido lhe dá palco. Fiquei congelada. E não era do frio invernal, mas do que aquela ameaça podia significar.

Eram 21h10. Tinha deixado a família sem resposta, pois não queria sequer pensar mais no assunto naquele momento. Voltei à sala. “O Marcelo ganhou em todos os concelhos e o Ventura ficou em 2º lugar em todos os distritos do interior”: isto fazia-me pensar durante os percursos angustiantes que repetia entre a sala e o escritório. Sentei-me a ver. Parecia que Ana Gomes – a mulher mais votada em eleições presidenciais de sempre – ia assegurar o segundo lugar, muito por causa dos distritos do litoral, de Norte e Sul.

Voltei ao escritório, questionando-me incessantemente: “Mas porque é que 500 mil pessoas acreditaram naquela retórica? Será que meio milhão de pessoas quer mesmo aquela personagem a ter uma palavra a dizer sobre as políticas e os destinos do nosso país? E porque é que o interior – onde trabalho e resido – deu o segundo lugar a AV?” As perguntas ficaram como que espalhadas na secretária em notas de post-it para lembrete diário nos próximos dias, meses, anos.

Dias depois, começava a escrever este texto, numa espécie de comoção premente em relação ao sucedido. Já tinha título: “Assim, não dá mais!”. Este não era apenas o meu desabafo, era o grito do interior para o resto do país. Passei a acreditar que, especialmente no interior, as pessoas que votaram AV estão desesperadas, desiludidas e, sem demagogia, abandonadas. Aqueles votos, resultado deste cenário, eram um clamor de alerta que, justa e perigosamente, o interior estava a dar ao resto do país, em especial a Lisboa e aos decisores que teimam em negligenciar mais de metade do território, que na realidade dista pouco mais de 100 quilómetros da costa.

E “não dá mais” porquê? Porque:

1) Esta região sofre de subfinanciamento crónico, a começar pelas universidades (se não o maior problema, um problema que conheço melhor), mas extensível a tantos outros serviços públicos;

2) Chegar a muitas cidades do interior pode ser mais caro – basta ouvir o bip dos pórticos das autoestradas – do que ir a Londres, Roma, Paris ou Berlim de avião;

3) Não há pessoas, não há vitalidade económica, não há massa crítica, não há liquidez financeira;

4) A aparente boa intenção do Conselho de Ministros ao aprovar a resolução para a “valorização do interior” terá resultado em coisa pouca, mesmo antes da crise pandémico-sanitária que vivemos;

5) A retórica que representa estas regiões como “Portugal profundo” é nefasta, preconceituosa e devia ser banida, pois estas regiões são tão profundas como as demais, nem mais nem menos; e

6) A democracia está a esquecer-se de responder às necessidades de regiões historicamente desfavorecidas, de pessoas que estão revoltadas, tristes e desesperançadas.

Posto isto, votar em AV pode ter sido, também, um grito de alerta para o resto do país, espacialmente, para quem tem poder de decisão. Não basta propor e até aprovar leis para “valorizar o interior” se depois nada de concreto e significativo é feito, nem as súplicas acolhidas pelos decisores. E enquanto a negligência ou o impasse continuam, quem lá mora resiste e persiste. Se o rumo continuar a ser este, que razões terá o povo para continuar a ser sereno ou silencioso?

O Portugal “profundo” dirá de novo: “Assim, não dá mais, democracia!”. E essa seria uma enorme tragédia, a juntar àquela que muitos já vivem: a da desesperança. Seria bom que os decisores se tornassem também cuidadores.