Em geral, o ser humano preocupa-se com aquilo que o afeta diretamente. Por vezes, pode centrar-se no que o rodeia, mas, na verdade, a sua perspetiva parte da sua experiência e da aculturação de que foi alvo. Assim, é compreensível que categorize pessoas e que considere que uns são mais iguais a si, do que outros. Mas terá cada um de nós o direito de dizer que não se é igual entre si? Isto é, terá alguém o direito de dizer que, apesar das diferenças que me separam do outro, a sua humanidade ganha caraterísticas diferentes das minhas?

Aparentemente, a resposta é positiva. Existem pessoas que se arrogam o direito de julgar que têm uma cultura, uma civilização ou uma maneira de estar superior aos que categorizam como diferentes. Portanto, que a sua humanidade (porque os humanos são produtores de cultura e das chamadas civilizações) é diversa dos outros humanos com os quais não se identificam. E aqui entra outra questão: a identidade. Infelizmente e apesar da banalidade com que palavras como “cultura”, “civilização” e “identidade” são usadas, trata-se de conceitos complexos, cujas perspetivas são ainda debatidas dentro do campo das ciências sociais e recebendo significantes diferentes consoante a abordagem disciplinar de que são alvo.

Deste modo, a facilidade com que alguns categorizam subjetivamente o “nós” e o “outro” é transposta para a esfera pública, lançando debates que, mais que uma questão de mentalidade, revelam o mais absoluto desconhecimento sobre a relatividade das relações antropológicas, sociológicas e políticas.

Esquecem-se, ainda, que a forma como nos vemos, nem sempre corresponde à representação que os outros têm de nós. E isto é válido para pessoas, grupos sociais ou países. Não é fácil aceitar que a nossa visão do que nos rodeia é relativa e é ainda mais difícil tentarmos colocar-nos no lugar daquele que julgamos “outro” porque o categorizamos como diferente. Mas talvez esse seja o único exercício que nos permita viver com alguma tranquilidade num mundo diverso e multipolar. Porque, afinal, tudo é uma questão de perspetiva.

Perspetivar o diferente

As clivagens sobre o “nós” e o “outro” estão presentes em todos os aspetos da nossa vida. A categorização em raças (conceito incorreto, mas que persiste na mente de muitos), classes socais, estados de saúde/bem-estar, género está em toda a parte onde nos movemos. Está também dentro das organizações que criamos, do sistema político em que vivemos e da sociedade que partilhamos. Refleti sobre esta universalidade da dicotomia “nós” e “outro”, porque cada vez mais me tenho deparado com esse raciocínio que funciona por oposição, apagando as zonas cinzentas que ficam entre os extremos e porque simplifica algo que é complexo.

Num desses casos, trata-se de uma menina, num evento promovido por um Senador brasileiro relativamente à retirada de apoio aos medicamentos para a Atrofia Muscular Espinhal. Esta menina refere-se a este facto e refere que se por momentos quem decide se tivesse colocado no lugar dela, teria percebido que lhe estava a tirar esperança de vida. Significa que uma menina de 12 anos assume que a tomada de decisão se baseou no facto de, nem por um momento, o decisor ter usado da sua relatividade e observado a questão do ponto de vista do utente. Aqui a questão que separa o “nós” do “outro” é uma doença, ou seja, um estado de falta de saúde.

Uma outra situação, muito diferente, levou-me a reflexão análoga. Um comentador político na televisão falava do isolamento do presidente Nicolás Maduro, na Venezuela. Alguém poderá pensar que um presidente, seja ele qual for, pode sobreviver nos planos interno e externo estando completamente isolado. É evidente que não pode. Creio que o comentador se referia ao facto de os Estados Unidos da América e a Europa Ocidental terem apoiado o autoproclamado Presidente Juan Guaidó, o que por si só não significa o isolamento do presidente Maduro ou do seu partido.

Neste sentido, o papel da Rússia e da República Popular da China têm sido decisivos para manter a situação e o statu quo. Provavelmente, o encontro entre os presidentes Donald Trump e Vladimir Putin trará um novo enquadramento a esta situação, mas isto não quer dizer que a Venezuela esteja isolada, como também não estão os dois presidentes que disputam este título.

Num e noutro caso, o problema é a perspetiva. A apreciação depende de que lado estamos a observar e o grau de identificação que temos para com quem está do outro lado. Estes dois exemplos estão nos antípodas da vivência humana. Um é relativo àquilo que de mais pessoal existe, a saúde, o outro é relativo às relações entre Estados e potências internacionais. Em ambos, o problema de nos identificarmos com um “nós” e com um “outro”. O risco é que olhando apenas para um lado da questão e vendo apenas alteridade no outro, estejamos a perder uma parte da realidade. O mundo é complexo e as dicotomias não explicam uma boa parte do que acontece.

Entre mesmidade e alteridade

A mesmidade advém da categorização de outros indivíduos como eu, isto é, assumimos que certas pessoas têm as nossas características, que podem ir do mais restrito grupo até à nacionalidade. A alteridade resulta do facto de classificarmos outras pessoas como diferentes de nós e até como estando fora do nosso grupo. Como o ser humano participa em muitos grupos (família, vizinhança, círculos de amizade, grupos profissionais até a grupos mais latos como a nacionalidade), nem sempre categorizamos da mesma forma a mesma pessoa.

O mesmo acontece com os países ou culturas. Quanto usamos a classificação judaico-cristão, estamos a incluir uma diversidade tão grande que, na verdade, na maior parte dos casos, os que estão dentro deste grupo estão fora dos grupos de nacionalidade, comunidade ou sociedade. O mesmo se passa com os países. Por exemplo, Espanha para Portugal é o outro, mas quando falamos da União Europeia e no conjunto de Estados e povos no seio desta organização, Espanha passa a ser o “nós” ou a mesmidade e deixa de ser o “outro” ou a alteridade.

Fazemos esta operação de categorização entre o “nós” e o “outro” tantas vezes que não nos apercebemos que umas vezes excluímos e outras incluímos os mesmos indivíduos ou instituições sociais e políticas. Contudo, a inclusão ou exclusão de alguém num grupo não traz problemas de maior. O que traz o maior problema é quando perspetivamos apenas a partir do nosso grupo tudo o que nos rodeia e perdemos a capacidade de ver que aquilo que nos parece alteridade e isolamento em relação a nós, pode e é apenas outro “nós” a funcionar que também nos vê como “outro”.

Confuso? Nem tanto, se fizermos como a menina brasileira pedia ao decisor político, colocar-nos no lugar do outro, tentar ponderar sobre a questão desde o seu ponto de vista.

Os jogos de alteridade e de mesmidade são ancestrais, mas quando caímos no erro de desumanizar aquele que caracterizamos como o outro, eliminamos o único recurso que nos permite partilhar um local, uma sociedade, um país ou mesmo o planeta. Esse enorme recurso que a humanidade dispõe é o diálogo, a capacidade de estabelecer pontes e, dessa forma, ultrapassar obstáculos.

Um contexto pós-ocidental

A diversidade est cada vez mais exposta, fruto de um processo de globalização comunicacional que, se por um lado, homogeneíza, por outro lado, dá a conhecer o diferente. Num mundo interconectado, é impossível ser-se alheio a esta realidade. É, igualmente, inadmissível que se continue a ignorar que existem outros centros produtores e difusores de cultura e política, com sociedades próprias. Os olhares e perspetivas sobre o mundo são muitos, diferentes entre si, umas vezes complementares e outras vezes opostos.

Há algumas décadas, o surgimento de uma visão pós-colonial trouxe a necessidade de interpretar o período colonial à luz não só dos discursos dominantes, mas também dos discursos dos dominados. Essa transferência do centro de análise trouxe novas questões às ciências sociais e permitiu agregar novos olhares sobre um passado e um presente prenhe de marcas do então colonialismo. Contudo, o alerta para esta interpretação da realidade descentralizadora trazia outra consequência.

O acento tónico era colocado nas relações coloniais, o que deixava de fora as relações também de subalternidade face a um discurso ocidental dominante de zonas geográficas que não tinham conhecido o colonialismo e que apenas tinham sido confrontadas com outras formas de domínio.

Para dar resposta a estas vozes, desenhou-se no âmbito da ciência política e das relações internacionais o conceito de relações internacionais pós-ocidentais que apontam exatamente para contextos de alteridade, em que o discurso e domínio ocidentais são colocados em questão. Apreendido por autores de diversos países, o conceito tem conhecido algum desenvolvimento, sobretudo, em países que se afirmam como potências regionais como a China ou a Índia.

Esta nova maneira de encarar o mundo, assenta no facto de nas várias regiões do globo existirem países com capacidade de propor novas culturas políticas e de reivindicar a reciprocidade no campo das relações internacionais. Deste modo, universaliza-se o conceito de alteridade, em que todos reconhecem a diferença, mas também a igualdade enquanto potenciais atores da esfera pública internacional.

O país que mais se tem destacado a este nível é a República Popular da China. Este facto deve-se à proposta internacional do projeto da Nova Rota da Seda, que começou por ser apresentado regionalmente e acabou por ir sendo alargado, tendo agora uma escala quase global. Em todos os documentos produzidos pelo governo chinês no âmbito deste grande projeto, fala-se de um mundo multipolar e multicultural que exige o entendimento entre os povos e a construção conjunta de uma economia partilhada para dar resposta a um mundo que deve ser gerido em conjunto.

Ao afirmar-se deste modo, a China propõe uma nova forma de diálogo internacional, bem como promove a criação de decisões partilhadas e ajustadas a cada caso, assumindo que mesmidade e alteridade deverão estar em permanente diálogo.

O mundo ocidental, ao não reconhecer os riscos das dicotomias internas ou externas entre mesmidade e alteridade, deixou aberta a outros povos e culturas a proposta de outras formas de organização do discurso internacional. Assim, o mundo foi-se tornando cada vez mais pós-ocidental, alicerçado na recusa ao diálogo que abre as portas à diversidade, à multipolaridade, mas também a que mesmidade e alteridade tenham de ser encaradas de outra forma. Porque afinal, no planeta Terra não existem fronteiras e do outro lado está outro pedaço de humanidade, muito idêntica à do lado de cá.