Como qualquer pessoa da minha geração, um dos filmes mais marcantes foi o Matrix (o original, os outros, e em particular o terceiro, são um pouco questionáveis…). Há um momento em que Morpheus explica o seu conceito de realidade – em que o real consiste, apenas, em sinais elétricos interpretados pelo cérebro.
Tem havido imenso debate sobre o perigo do uso da inteligência artificial e a desinformação. Atualmente, não tenho dúvidas de que a curto prazo esse pode ser o maior perigo, contudo, a longo prazo parece existir um tema mais complexo que teremos de enfrentar enquanto sociedade – e quando deixarmos de acreditar em tudo?
Inspirada numa citação que li recentemente da filósofa alemã Hannah Arendt, tenho refletido que mais perigoso do que manipular os outros a acreditarem numa mentira será fazer com que ninguém acredite em nada. Quando os indivíduos deixarem de distinguir entre a verdade e a mentira, a base da confiança que é necessária para qualquer sociedade funcional deixa de existir.
Uma sociedade funciona porque acreditamos nas regras formais e informais da mesma. Sem confiança, a civilização deixa de existir. Dos exemplos mais prementes é o dinheiro. O dinheiro é um artífice, sem confiança elementar, o dinheiro deixa de ter significado e as trocas comerciais desmoronam.
A confiança é um dos motivos pelos quais os seres humanos são tão maus a discernir uma mentira de uma verdade. Quando falamos com outros formamos uma opinião sobre a sua credibilidade, contudo, a nossa técnica é muito falível. A própria teoria associada às microexpressões já foi muito refutada, sendo que é impossível inferir com certeza uma mentira através da expressão de uma emoção.
Porém, para a maioria dos seres humanos, mentir não é fácil. Requer muito esforço mental para criar uma narrativa alternativa, manter a mentira e controlar as nossas emoções.
Todavia, para uma máquina, mentir não traz esse ónus, ou seja, torna-se fácil criar mentiras e “realidades” alternativas. Ao passo que hoje ainda conseguimos “saber” que o Papa Francisco não vestiu o casaco Balenciaga nem foi ao festival “Burning Man”, quem saberá discernir uma verdade ou falsidade a respeito de uma pessoa normal e “anónima”?
Julgo que o maior perigo na desinformação pode não ser apenas destinada a figuras públicas, mas a qualquer um de nós. Quando isso acontecer com escala, passará a ser difícil saber o que é “real” e o que não é, e deixará de haver confiança. E quem saberá se é ar ou outra coisa?