Cá dentro

De que se faz uma crise política em Portugal? Da imprudência de uns quantos e da má-fé de quem governa. O período que acabámos de viver diz o pior da classe política que tivemos o azar de nos calhar em sorte desde as mudanças provocadas pelas últimas eleições.

Num momento de revelação, como foi este, podemos aproveitar para aferir da fibra e da qualidade dos diferentes protagonistas da crise. Assunção Cristas e Rui Rio meteram-se num imbróglio, contradizendo a postura esperada de quem já governou e diz esperar voltar a governar. Estiveram mal desde o primeiro minuto da proposta, seguiram pior com os avanços, silêncios e recuos desnorteados, terminaram péssimos com declarações esfarrapadas e o ignóbil abandono dos agentes parlamentares pelas lideranças.

Rio foi categoricamente desmentido por Fernando Negrão, Cristas foi poupada por Ana Rita Bessa, mas, em ambos os casos, toda a gente sabe o que se passou e sabe classificar este tipo de comportamentos. No final do dia, Cristas e Rio conseguiram uma descredibilização sumária e provar que Costa não depende exclusivamente do Bloco e do PCP para sobreviver à frente do Governo que usurpou precisamente ao PSD e ao CDS. Era muito difícil fazer pior.

Por sua vez, Costa também recordou aos mais distraídos de que fibra é feito e que princípios o guiam. Aproveitou, com a sua já proverbial habilidade, cada erro dos adversários desde o primeiro minuto. Teve a desfaçatez, corroborada pelos acontecimentos, de afirmar que não espera solidariedade exigente dos seus parceiros da esquerda radical e que a exige aos que o derrotaram nas eleições.

Costa lançou de moto próprio o país numa crise irresponsável por calculismo eleitoralista, visando misturar o mais possível legislativas e europeias. Não perdeu um segundo a pensar no interesse de Portugal e dos portugueses. Foi inclemente a trucidar os adversários que propuseram aquilo que ele próprio tinha prometido em campanha eleitoral, e agora nega. É preciso um enorme descaramento, uma indescritível falta de princípios e um profundo desrespeito pelas instituições e pelos eleitores. Foi habilidoso? Sim, sem dúvida. Berardo também foi habilidoso. E depois?

Costa continua, apesar dos disparates de Cristas e de Rio, a ser o rosto do maior nepotismo de que há memória no Governo de Portugal; os seus escolhidos e protegidos, as respectivas famílias, amigos, comparsas e camaradas são os novos donos disto tudo, e não há malabarismo do chefe que apague a realidade.

Marta Temido ouve a Internacional enquanto liquida o Serviço Nacional de Saúde, com mandato pleno de Costa. O comboio socialista volta a passar, atrasando o de todos os portugueses, pela soberba de Costa. Os estudantes de todo o país sabem que só há residências em Lisboa, por decisão de Costa. Cada vez que abastecemos o carro, sabemos que não houve variação do imposto em função do preço porque Costa nunca cumpre o que promete.

O poder de compra perde-se, os impostos cegos são um flagelo para todos, principalmente os mais pobres, porque Costa assim quer. A Cultura está na penúria porque Costa diz uma coisa e faz outra. Tancos foi a vergonha que foi, e parece que Costa nem era primeiro-ministro. Tanto, tanto, tanto a dizer. Considerar Costa o vencedor da crise, só por quem se rege pelos mesmos valores e vive na exortação do malabarismo em política. Costa não ganhou coisa nenhuma, apesar de infligir uma pesada derrota aos seus adversários. Ficamos apenas a saber que estamos entregues a dois incautos e um vilão. É pouco animador.

Na Europa

Apesar de todo o fogo de diversão interno, é mais importante que nunca olhar com atenção para estas eleições europeias. É essencial avaliar protagonistas, programas e, essencialmente, a ideia de Europa que cada um representa.

Temos, felizmente, diversidade para escolher, e não há desculpa para não ir votar. Os partidos radicais, da esquerda e da direita, são, sem surpresa, contra o projecto europeu e propõem-se boicotar por dentro; tudo claro para o eleitor anti-europeu, é só escolher entre o Basta, o PC ou Bloco. Paulo Rangel e Paulo Sande preconizam com lastro e credibilidade uma Europa cada vez mais federal, com mais poder e mais poderes em Bruxelas e menos poder e diferenciação nos Estados membros; opções políticas respeitáveis, claras, deixando ao eleitor a tarefa de optar entre o PSD e o Aliança em função da sua simpatia maior por uma ou outra candidatura.

Nuno Melo aparece sozinho na defesa de uma linha com grande tradição europeia, mais conservadora e defensora da preservação da soberania dos Estados e do carácter específico das nações na construção permanente do projecto europeu. Resumindo, os extremos ficam com a negação, o PSD e o Aliança com o arrojo federalista e o CDS com a prudência conservadora; tudo claro e honesto.

Apesar de europeísta – e acreditando que o voluntarismo de personalidades como Carlos Moedas, depois seguidos por actores como Rangel e Sande, é essencial para o progresso da ideia de Europa que mais me seduz – creio num equilíbrio e moderação que não se faz sem a voz avisada dos conservadores. Escolho Nuno Melo, de modo muito pragmático, como moderador assertivo e responsável de um projecto que acredito seguirá em frente sem necessidade de rupturas ou revoluções.

Não referi Pedro Marques, o candidato do PS, porque não tem qualquer tipo de lastro, pensamento ou credibilidade em matéria europeia. A sua escolha foi mais uma habilidade, mais um acto de amiguismo, enfim, um insulto à Europa. Estas eleições não se compadecem com a transfusão das lógicas de distribuição de cargos do Largo do Rato, são infinitamente mais do que isso. Foi toda esta miséria que Costa quis esconder ao encenar a crise e baralhar eleições, mas a escolha será sempre entre diferentes projectos para o futuro da Europa e a lista do aparelho do PS. Por muito que dois incautos tenham dado o flanco momentaneamente ao vilão.