O Major-General Carlos Branco é, sem dúvida, uma pessoa inteligente.
E é por isso que alguns dos seus artigos e muitas das suas opiniões a propósito da guerra na Ucrânia são tão estranhos. Ao criticar sistematicamente os europeus, a NATO, e todos quantos condenam a invasão russa, de forma geral e genérica, chamando-os de ignorantes e intransigentes com défice cognitivo, o Major-General Carlos Branco é intransigente e parcial.
Sendo inteligente, alguma outra explicação haverá para opiniões tão rígidas e radicais. Nas suas análises não há “nuances” nem dúvidas. O seu mais recente artigo neste Jornal, de 2 de janeiro, “Atos de ignorância e intransigência cognitiva”, é a esse respeito ilustrativo.
Resumindo (com o que de risco há num resumo), o Major-General considera que “Moscovo está a travar uma guerra na Ucrânia para conseguir aquilo que não conseguiu por via diplomática, ou seja, definir uma nova arquitetura de segurança na Europa que lhe dê garantias de segurança e aos seus vizinhos”.
Ou seja, a Rússia trava uma guerra ilegal (sob o ponto de vista do direito internacional, e não me venha o Major-General dizer que não, porque eu também não lhe direi como planear uma batalha), invade um Estado soberano cuja independência se comprometeu a respeitar “nas fronteiras existentes” à data de 1994, aquando do Memorando assinado em Budapeste com o Reino Unido e os EUA, mais tarde apoiado por China e França – e fá-lo “para definir uma nova arquitetura de segurança”?!
Tal como o Major-General, conheço o argumento de Vladimir Putin relativo à “expansão da NATO” para Leste. Uma expansão que, ao contrário do referido Memorando e do direito internacional em geral, nunca foi objeto de qualquer acordo formal; relativa a uma organização por definição defensiva, apesar da duvidosa legalidade da intervenção no Kosovo, que certamente ninguém de boa fé acredita que alguma vez ameaçaria(á) a potência nuclear russa; e feita a pedido dos países de leste em causa, talvez por se sentirem mais seguros protegidos por ela.
E não pode senão ser um oxímoro a ideia de uma arquitetura de segurança obtida consistentemente através da guerra e da conquista (ilegal). Na melhor das hipóteses, se a guerra aberta mais mortífera do século chegar ao fim por não haver outra solução, exauridos os combatentes ou esgotada a capacidade de resistência da Ucrânia (infelizmente, pode vir a acontecer) ficará para sempre, e sempre em risco de reabrir, uma ferida a sangrar no coração do continente europeu.
Obter garantias de segurança através de actos de agressão ilícitos, anexando territórios de Estados soberanos, é uma ideia própria de outros tempos que não devia ser propalada por um militar do Ocidente (ou por qualquer ocidental amante da liberdade). Invocar o realismo como doutrina não torna a realidade menos vil.
No artigo, o Major-General acusa os dirigentes europeus de não terem feito o trabalho de casa, porque (1) esqueceram o discurso de Putin em Munique 2007, porque (2) não avaliaram bem as razões da invasão da Geórgia, porque (3) ignoraram as boas intenções de Medvedev em 2008 e porque, finalmente (4), desdenharam as tentativas russas de acordo em 2021.
Pois bem, o Major-General Carlos Branco desdenha, ignora, não avalia e esquece os muitos conflitos em que a Rússia se envolveu nos últimos anos: duas guerras sangrentas na Chechénia; o ataque à Geórgia em 2008, que diz provocado pelo convite para aquele país aderir à NATO, havendo quem, como eu, suspeite que possa ter sido pelo ataque da Geórgia à Ossétia do Sul (ocupada militarmente pela Rússia, como a Abkházia); a anexação da Crimeia em 2014 e o apoio à secessão de Donetsk e Lugansk; a intervenção na Síria desde 2015, com milhares de soldados, cujo regime teve de abandonar por estar envolvida na Ucrânia. E nem falo dos muitos opositores (e outras espécies incómodas) misteriosamente mortos, suicidados, desaparecidos. Dos Navalny que nos deviam assombrar mais do que assombram.
Boa fé? Sério?
E a “operação militar especial” para subjugar a Ucrânia, visando, disse Putin, “defender os ucranianos do genocídio praticado pelo regime neonazi, desmilitarizar e desnazificar o território e obter um estatuto de neutralidade” (provavelmente governado por um qualquer títere de Moscovo)? Que devia durar duas semanas, passou à categoria de “guerra” dois anos depois e vai a caminho dos três.
É culpa do Ocidente? O Major-General não esconde o seu alinhamento ideológico quando diz que a Rússia pretende “um estatuto condizente com a sua importância na nova ordem multipolar em construção”. Leia-se, portanto, uma ordem multipolar que reforce o estatuto de países autoritários ou mesmo autocráticos – sem falar no infelizmente crescente número de Estados falhados. É reveladora a sua referência ao perigosíssimo “neoliberalismo globalista” (seja o que for que isso queira dizer, ainda que seja fácil de perceber o que não quer dizer).
Não tendo a capacidade do Major-General para ver só um lado da questão, concordo com algumas das suas afirmações:
A Europa não conseguirá garantir a segurança da Ucrânia sem o apoio norte-americano (Trump, sempre Trump) e o envio de tropas de manutenção de paz da UE é uma hipótese disparatada. Também concordo com a ideia de que a Rússia não tem capacidade militar para atacar o Ocidente (a NATO), salvo uma impensável (e suicida) aventura nuclear (a cuja utilização irresponsavelmente alude, velada ou explicitamente).
Também curioso é o Major-General escrever que “(…) as opiniões públicas europeias foram enganadas pelos seus líderes quando lhes venderam uma vitória fácil: ‘… um passeio na praia no confronto com uma estação de serviço com armas nucleares’. Afinal, em vez do cordeiro manso saiu-lhes um urso”.
A sério? Um urso convencido de uma superioridade militar inquestionável, armas nucleares, com cinco vezes mais soldados, um “poderosíssimo” exército e uma pequena ajuda dos amigos (coreanos incluídos), que luta há quase três anos contra o pequeno cordeiro ucraniano e já foi por isso obrigado a deixar cair um aliado estratégico (Bashar)?
O Major-General Carlos Branco pode perceber muito de estratégia militar, mas percebe pouco de ursos.