Após ter estremecido com o assustador número de mortes causado pela violência doméstica, parece que o País pode finalmente regressar ao seu torpor habitual. Já está encontrado o culpado: o reincidente juiz Neto de Moura. Declarado inimigo público número um, a opinião publicada caiu sobre ele numa voragem própria de apedrejamento público. Cada comentador, humorista, político, feminista de primeira ou última hora procurou superar o anterior, atirando a pedra mais pesada ou desferindo o golpe mais violento.

Mais grave é que da identificação do culpado à generalização vai um passo demasiado curto. Diz-se que “os magistrados são machistas” (apesar de hoje serem maioritariamente mulheres!) e que, por isso, “não punem com suficiente severidade os agressores, perpetuando uma ancestral cultura de violência sobre as mulheres”. Afirma-se que “este juiz dá mau nome à magistratura”. E, enfim, declara-se que este caso revela o “real estado da nossa magistratura”.

Por muito injusto que seja o veredicto, a culpa de um só juiz condenou toda a Justiça. Alcançada a catarse, o País seguirá em frente até se indignar com o próximo escândalo público. Este ritual já se repetiu diante dos nossos olhos diversas vezes, a respeito de variados tipos de crimes.

A corrupção foi apenas o último deles, com a Justiça a ser responsabilizada por não ter sido suficientemente eficiente na investigação, acusação e condenação nos inúmeros processos que abriu e que, como é sabido, envolvem responsáveis ao mais alto nível da política e da economia nacionais, implicados em sofisticadas operações criminosas.

Ainda recentemente, houve quem alvitrasse que os crimes de corrupção não deviam ser julgados pelos tribunais comuns, mas que deviam antes ser da competência de tribunais especiais, certamente mais apetrechados tecnicamente e mais céleres no julgamento e, supõe-se, na condenação (sumária) dos grandes corruptos que impedem o País de progredir.

O que poderia ser uma excelente ideia, não fosse a Constituição proibir, precisamente, a criação de tribunais especiais com competência exclusiva para o julgamento de determinado tipo de crimes (artigo 209º, nº 4), em nome de um passado ao qual não se quer regressar – ou já ninguém tem memória dos tribunais plenários, extintos pela revolução de 1974?

Pelo meio deste movimento de dissimulada, mas contínua responsabilização da Justiça pela não resolução do problema da corrupção, houve ainda tempo para acusar as magistraturas – por muito inverosímil que isso pareça – de não estarem à altura do drama dos incêndios, enquanto Portugal fazia o rescaldo das chamas que ceifaram vidas humanas em número nunca antes visto.

Apresentaram-se então estatísticas de detenções, acusações e condenações pelo crime de fogo posto e concluiu-se que, manifestamente, face à recorrência do fenómeno, a máquina da justiça não cumpria a sua função de defesa da sociedade contra os delinquentes em causa.

Daí a pergunta: será a Justiça, afinal, a culpada disto tudo?

Infelizmente, os problemas que chegam à Justiça são os problemas da nossa sociedade – uma pequena parte deles, aliás. Os magistrados – judiciais ou do Ministério Público – não são responsáveis pelos flagelos da violência doméstica, da corrupção ou dos incêndios. Responsabilizar a Justiça por estes males – mesmo quando alguns magistrados se põem muito a jeito – é a mesma coisa que culpar os médicos pelas tromboses, pelos cancros e pelas pneumonias que chegam aos hospitais e que aí, sem resultado garantido, eles procuram resolver.

A sociedade pode ser volátil quanto aos crimes que, em cada momento, valora como mais danosos ou como mais repugnantes. Mas é ao legislador, ao governo e às instituições privadas que – através da educação, do desenvolvimento de uma consciência coletiva e da criação de mecanismos de controlo jurídico – cabe desenvolver ativamente políticas que previnam a violência doméstica, a corrupção e os incêndios. Sem uma estratégia coerente de prevenção, de efetiva redução dos fenómenos em causa, à Justiça não resta senão desvendar a ponta do icebergue, encontrando soluções imperfeitas para casos difíceis, marcados por um grande grau de incerteza.

Mas, se não é culpada disto tudo, a Justiça é porém o melhor bode expiatório que se poderia imaginar. Constrangida pelo segredo de justiça, com os magistrados sujeitos a um dever de reserva, e com a ausência de uma estratégia de comunicação dos órgãos representativos das magistraturas (incluindo os sindicatos), a Justiça não tem, de facto, como desfazer a ideia de que os males do País estão nos preconceitos do juiz A), no conteúdo do acórdão B) ou no atraso da sentença C).

Nesta estória triste, o desembargador Neto de Moura é apenas a mais injusta das caricaturas que se pode traçar da Justiça portuguesa!