Traição é das palavras que, uma vez dita, tudo altera. Há um antes e um depois de ter sido dita, como uma acusação dirigida ao chão mais fundamental que sustinha uma relação. Na etimologia, a palavra ‘trair’ vem do latim e remete-nos para a ideia de abandonar. Trair não é simplesmente enganar, mas enganar de uma maneira que fere e indigna porque é um engano perpetrado apesar de um chão firme que existia, que foi largado, e que deveria ter resistido a esse abandono.
O traidor deixa cair aquele a quem devia a promessa de não o abandonar na queda. Entrega-o, explícita ou tacitamente, ao mal que ambos até então não queriam, tenha ou não o nome de inimigo, obrigando a considerar se não será de inimizade o futuro da relação que os ligava.
A Europa foi traída por Trump? Certamente, quando é por ele posta fora do veículo negocial da paz entre Rússia e Ucrânia. E como a Europa, o próprio Zelensky é abandonado quando Trump acorda previamente com Putin, a sós, quais os termos em que se negociará a paz.
A própria NATO, que tanto mal-estar causa a Putin, é traída por Trump. Com alguma ironia, são os EUA, sob esta administração, a mostrar como a NATO é uma estrutura de mobilização militar cujos fundamentos se tornaram anacrónicos. Um deles era a defesa comum e foi abandonado de forma gritante quando Trump manifesta abertamente o seu apetite pelo território da Gronelândia, com a dose dupla de ironia de se tratar precisamente de um apetite dirigido ao Atlântico Norte, aquilo que o Tratado devia prevenir.
O outro fundamento previsto para acções da NATO consistia em intervenções sob mandato das Nações Unidas. Mas, desde há bastante tempo, as Nações Unidas são um lugar de estranhamento da política externa norte-americana. Já com Biden era assim a propósito da sua tolerância cínica para com os actos genocidas autorizados por Benjamin Netanyahu junto à população palestiniana em Gaza.
Os valores subjacentes à carta das Nações Unidas têm sido sistematicamente traídos e a acrimónia crescente entre António Guterres, secretário-geral da ONU, e as administrações norte-americanas deve ser interpretada à luz destes factos corrosivos. Trump querer limpar o território de Gaza, a imaginar nele, uma vez “limpo” de palestinianos, a oportunidade de um grande empreendimento imobiliário, é só a aliança entre o evidente desprezo por direitos humanos consagrados e o seu “core business”, enquanto empresário, desde a década de 80 do século passado.
Mas até que ponto não participou a Europa da traição de que agora se diz vítima? Indigna-se agora com a traição às claras de Trump, mas não foi a compreensão da União Europeia com as pequenas traições dissimuladas, semi-envergonhadas, de Biden a sua forma de participação? A falta de clareza e de verticalidade paga-se mais tarde e parece que o mais tarde está a chegar agora e com violência. Como se tivessem o rei na barriga, Musk e companhia atacam abertamente o projecto europeu empoderando a direita radical – um tecnicismo de politólogos cada vez mais usado para não dizer extrema-direita.
A Europa encontra-se num estado de quase cedência a uma viragem anti-democrática. Um discurso de J.D. Vance, Vice-Presidente dos EUA, proferido há dias, não se poupa a acirrar os ânimos, num registo perto da agressão verbal – conceito que desconhece, permita-se o aparte – aos valores que, pelo menos num plano ideal, conduziriam a construção europeia. Todo um esforço político norte-americano vai emergindo no sentido de fazer inclinar a balança num sentido de destruição interna dos pressupostos da UE. Nada disto teria sucedido, se tivesse sido outra, mais clara, a forma da Europa se posicionar.
Agora Macron fala com Trump por 20 minutos, muito menos do que Putin em todo o caso. Curiosa esta medida em minutos de chamada telefónica da importância dos líderes! Os europeus reúnem em Paris. É expectável que tudo vá andar para trás e para a frente, como é habitual em Trump, mas serão sempre dois passos em frente e um atrás na marcha pretendida, e em que valores fundamentais que ninguém tem coragem de negar frontalmente vão sendo neutralizados, tornados cada vez mais letra morta. Embora possa parecer apenas espalhafato populista, estamos num processo de perda, muito objectivamente. E não faltam nele responsabilidades europeias.
Também dizemos ‘trair’ quando revelamos algo que não pretendíamos, quando uma palavra, um olhar, trai as intenções. Nesta acepção da palavra havia muito que dizer sobre a política externa europeia dos últimos anos, muito em particular no que respeita aos conflitos na Ucrânia e em Gaza.
O que fazer, depois da traição? A Europa pode não ser exemplo para muita coisa ao longo da sua história e tem hoje de se confrontar com o facto de, cada vez mais, ser apenas uma pequena parte do planeta. Ainda assim, o seu projeto de União Europeia, sem fronteiras, mas sem se fundir numa entidade única, é tentativa de uma contenção de poder que confere outros poderes, mais em linha com a contenção constitutiva de um bom entendimento da democracia, das relações internacionais, da justiça global e, já agora, de uma prática ecologicamente consciente.
A Europa tem de olhar para os seus fundamentos e ver com quem conta no mundo para poder prosseguir sem se trair. As Nações Unidas precisam do projecto europeu como aliado porque subsiste um chão de valores comuns e que foi o que formou ambas. A China é uma potência global que o preconceito ocidental – com o seu fundo xenófobo – procura isolar. A União Europeia devia reavaliar, para melhor, os posicionamentos da China nos conflitos em curso e levá-la mais a sério como interlocutor de pleno direito. Naturalmente, sem perder de vista a pressão pelo respeito dos direitos humanos nesse país. E, mais fundamentalmente, a Europa devia perceber-se, à escala global, mais como do Sul do que do Norte que desenha a sua geografia efectiva. Fazia falta uma jangada de pedra europeia para um mundo melhor. E uma Europa melhor.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.