As últimas semanas têm vindo a confirmar a urgência de que uma das principais prioridades da próxima legislatura seja uma reforma da Justiça.

Esta discussão é actualmente influenciada pelas grandes investigações realizadas pelo Ministério Público, altamente mediatizadas e que tardam em produzir resultados (quando não produzem resultados contrários às expectativas iniciais). Mas embora seja importante considerar a forma como essas operações são processadas, o problema fundamental ultrapassa muito esse aspecto.

O que está realmente em causa é um dos pilares do Estado de Direito e da vida em sociedade.

Tenho dito várias vezes que a Justiça é a principal e mais nobre função do Estado. Trata-se de criar as condições para resolver conflitos que, aos mais variados níveis, e inevitavelmente numa sociedade que se pretende livre e humanista, surgem entre os cidadãos, ou entre os cidadãos e as instituições, ou entre distintas instituições.

Desta noção inicial de Justiça deriva toda a multiplicidade de outras actividades e funções que nos habitámos a confiar ao Estado, já que todas elas, de uma forma ou outra, se podem reconduzir a uma actividade de resolução de conflitos de interesses. Interesses que serão pessoais, ou colectivos, profissionais, económicos, sociais, culturais ou, o que não constitui o menor grupo, de segurança, interna ou externa.

Nas sociedades ocidentais, herdeiras mais ou menos directas das civilizações grega a romana, da tradição judaico-cristã, da renascença, do iluminismo, da revolução francesa e do liberalismo, a Justiça traduz-se na criação e aplicação da Lei, através de órgãos próprios com funções especializadas e autónomos entre si, segundo um princípio fundamental a que chamamos separação de poderes, tudo tendo como pano de fundo a ideia de preservação e garantia da liberdade.

Para cumprir esta finalidade, a Justiça deve garantir que os seus processos são rápidos, seguros, equitativos e respeitam a liberdade das pessoas. Isto tanto no que respeita à gestão do funcionamento diário da administração pública, como aos procedimentos de natureza contenciosa, em que intervém os Tribunais.

A prevenção e combate ao crime é apenas uma das vertentes da actividade dos órgãos do Estado que são especialmente encarregues da promoção e administração de Justiça, que estão (ou devem) estar subordinados aos princípios acima elencados. Mas como a sua área de responsabilidade impacta directamente com a liberdade individual, a sua actuação deve ser especialmente orientada por forma a não interferir indevidamente com a vida privada e respeitar a dignidade das pessoas.

É por isso que intervenções mais invasivas devem ser autorizadas caso a caso por um magistrado judicial, e devem ser limitadas no tempo e ao estrito necessário para confirmar a existência de indícios fortes de comportamentos que possam constituir crimes.

A prova deve ser sólida, assente em elementos reais e não em indícios que em vez da realidade podem traduzir percepções mal fundamentadas. E as medidas de prevenção limitadoras da liberdade devem ser a excepção, porque a acusação não equivale a culpa, nem a condenação. E os excessos devem ser combatidos, não justificados.

Infelizmente, o que se passa em Portugal, não só no domínio da Justiça criminal, parece estar longe de obedecer ao modelo mais desejável. a bem da liberdade, da segurança e da dignidade da pessoa humana, é necessário acabar com este estado de coisas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.