É verdade que as democracias não se esgotam no voto. Mas é no voto que reside a principal e fundamental ligação entre governados e governantes. A legitimidade democrática de que tantas vezes ouvimos falar não se pode bastar com mecanismos legais e jogos parlamentares para conquista de poder. Sim, são legítimos do ponto de vista jurídico e interessantes de assistir do ponto de vista da negociação e estratégia política, mas a sua vulgarização é preocupante para o futuro das democracias e para ligação “umbilical” que deve existir entre Governo e Povo.

Não é por acaso que a generalidade das democracias assenta em algumas saudáveis tradições: em princípio, o partido mais votado exercerá o poder (sozinho, coligado ou com acordos parlamentares que o sustentem) e, a não ser em situações excecionais, a queda de um Governo deverá provocar eleições que legitimem um novo. Entende-se – e bem – que a forma como um Governo chega ao poder deve respeitar a vontade da maioria do eleitorado e ser relativamente simples de entender por este. A isto chama-se legitimidade politica que vai muito além da legitimidade jurídica.

Ora, os tempos mais recentes têm tido demasiadas exceções àquelas saudáveis tradições democráticas. Estão na moda os jogos parlamentares. As motivações que levam a este tipo de soluções são distintas, mas têm uma consequência comum: menorizar as eleições. E isso parece-me bastante desgastante para a credibilidade do “pior dos regimes, excetuando todos os outros”, nas inesquecíveis e acertadas palavras de Winston Churchill. Curiosamente, um bom exemplo do poder do eleitorado: um líder excecional e heroico que venceu a grande guerra, mas perdeu as eleições pós-guerra (voltando a vencer eleições mais tarde).

Como sabemos, o “golpe” parlamentar do qual nasceu o Governo da “Geringonça” deu o mote, mas o “esquecimento” das eleições tem-se tornado perigosamente vulgar. Temos o Brasil que, depois do “impeachment” de Dilma, vive há quase dois anos sob a liderança de um Presidente totalmente rejeitado por uma maioria qualificada dos brasileiros e no “caos” político e social. E, agora, a Espanha que, para além de ter assistido a uma reprovável mistura entre o judicial e a política (que começa a virar moda, diga-se), viu – em poucos dias – cair um Governo nascido de eleições recentes e ser empossado outro com legitimidade parlamentar do ponto de vista legal, mas manifestamente ilegítimo do ponto de vista eleitoral e sem vergonha de ser suportado por partidos separatistas regionais que pretendem a divisão do país.

Tal como o caso português comprovou, coincidindo com alguma prosperidade económica e habilidade e sucesso na governação, a memória dos eleitores é curta. No entanto, parece-me evidente que as boas práticas democráticas não se resumem a uma imperativa e eventual competência dos governos. A forma como chegaram ao poder, releva tanto ou mais como condição da boa democracia do que a avaliação da competência de um qualquer Executivo. Isto porque, como sabemos, a prosperidade é normalmente cíclica, mas os melhores princípios democráticos devem ser permanentes, pois são o garante da nossa liberdade e da harmonia entre os dois elementos que compõem a palavra democracia: povo e poder.