Tal como noutros sectores, a pandemia teve um forte impacto na venda de automóveis em Portugal, mas a Associação Automóvel de Portugal (ACAP) deixa forte críticas ao Governo. Se por um lado, o sector não tem sido alvo de apoios, como outros, por outro lado, têm sido retirados benefícios à compra de carro elétrico, que poderiam servir de paliativo num momento em que todas as ajudas são bem-vindas. Em entrevista ao Jornal Económico, o secretário-geral da ACAP, Hélder Barata Pedro, faz um ponto de situação do sector – que se sente “abandonado” pelo Governo em relação à pandemia – e revela qual o caderno de encargos para o médio prazo.
Os atuais apoios para a compra de carro elétrico são suficientes?
A ACAP defende que é preciso aumentar o valor do incentivo aos elétricos, e aumentar também o número de veículos abrangidos, que são insuficientes para o mercado que temos neste momento. Muitos países europeus aumentaram o valor dos incentivos em junho/julho de 2020. Temos países como a França que dá seis mil euros de incentivo, a Irlanda cinco mil euros, a Itália seis mil euros, Espanha aumentou e pode ir até sete/oito mil euros com o incentivo ao abate. Chamámos a atenção que era importante haver um estímulo à procura como nestes países. O Governo português não entendeu assim e não fez qualquer atualização do valor atual, deixando o sector surpreendido porque até eliminou o benefício paras as empresas que compram ligeiros de passageiros, ou seja, que estavam a reforçar as suas frotas do departamento comercial com elétricos, por exemplo, ficando apenas o incentivo para ligeiros de mercadorias que aumentou para seis mil euros, mas limitado a 150 veículos. A própria Comissão Europeia recomenda aos estados apoio no âmbito do Green Deal Europeu aos veículos elétricos nesta fase, porque ainda há uma necessidade de apoiar os consumidores. A Europa tem estes objetivos ambiciosos de emissões. É preciso que os poderes públicos façam o seu papel como nestes países, tal como em Espanha que avançou com um reforço muito significativo do valor dos incentivos. É este o caminho da descarbonização que em Portugal não se verificou.
Como é que estão a correr as vendas de carros elétricos este ano?
Em 2021, estamos com uma queda de 14%; houve um arrefecimento. De janeiro a abril foram vendidos venderam 2.503 unidades face às 2.916 vendidas em período homólogo. Houve o encerramento do sector em janeiro e fevereiro. Há assim uma estagnação da procura ao contrário de outros mercados europeus: na Alemanha, as vendas triplicaram este ano. O mercado tinha crescido 13% em 2020, com outros mercados a crescerem quase 200% no mesmo período. O nosso mercado está estagnado face a outros mercados europeus.
A proposta do PAN para o OE 2021 que foi aprovada no Parlamento previa o fim dos apoios para a compra de híbridos e plug-ins. O mercado está-se a ressentir desta medida?
Foi uma surpresa para nós. A nossa esperança é que com esta pandemia houvesse mais estímulos a procura do nosso sector. Nao só nao se verificou, como fomos surpreendidos com um agravamento fiscal, a retirada de um benefício, um mês e meio antes da sua entrada em vigor. Este tipo de medidas tem de ser discutida previamente, as marcas fazem as suas encomendas com um intervalo de seis meses, e a um mês e meio de alterar a fiscalidade de um segmento de mercado com peso como os híbridos. Por outro lado, temos de ter em conta que na descarbonização e na redução das emissões os híbridos têm um papel fundamental na redução, tem de facto muito menor emissão do que o modelo correspondente a gasolina ou gasóleo. Mas mais uma vez foi dado um sinal contrário. No caso dos híbridos convencionais, usou-se um critério que nem e aplicado, tecnicamente nem tem a possibilidade de cumprir esse critério. Há um erro técnico, nem sequer tem aplicação prática.
Conseguem olhar para as vendas e ver já este impacto este ano?
Primeiro, temos os veículos que havia em stock no final do ano, foram matriculados e foram sendo vendidos ao longo dos primeiros meses do ano. Depois, temos o encerramento da atividade e cada marca reequacionou toda a estratégia de vendas, mas com ónus de haver sempre esse maior pagamento ao Estado de imposto ou por parte da marca ou do consumidor.
Já falámos dos apoios para o s carros elétricos, mas e para o mercado em geral? A ACAP tem defendido um incentivo ao abate. Esta medida vale a pena, entre outras?
Sem dúvida, porque essa medida é a única no sector automóvel que junta duas situações: renovar o parque, porque está a ficar envelhecimento e há uma necessidade de renovação desse parque. A medida visa retirar de circulação veículos com uma emissão média de 17 gramas, substituindo por veículos novos sem emissões ou de baixas emissões. Isso foi o que Espanha, França e Itália fizeram logo em maio. Espanha já vai no terceiro programa e tem vindo a aproveitar esta crise para estimular a situação dos concessionários de automóveis.
Ao contrário de Portugal…
É uma situação muito complicada e estamos a falar de PME [pequenas e médias empresas], não estamos a falar de grandes empresas, e essa medida que defendemos achamos que é a única ou a principal para este sector com essa dupla vantagem de haver uma renovação do parque automóvel e estimular a procura para não termos o mercado com a maior queda da UE. Vemos o caso da França, em que o mercado está a crescer, assim como outros mercados. O Governo italiano deu um orçamento para 2021 para entrar com o pacote de iniciativa ao abate.
Apresentaram essa medida ao Governo?
Em Portugal, a ACAP apresentou logo ao Ministério da Economia em março/abril do ano passado esta proposta, sendo que tivemos várias reuniões. O Ministério da Economia é um ministério que está muito atento a vários sectores e têm noção do problema que existe no sector. A iniciativa ao abate está em vigor na Região Autónoma da Madeira. É uma região, num país, que já aplicou o incentivo. Já pedimos ao Governo regional dos Açores uma medida semelhante há uns anos, mas era bom que o Governo da República complementasse a medida no âmbito nacional. Até ao momento não temos qualquer resposta.
Em termos de fiscalidade, quais as mudanças que podem contribuir para o aumento da procura?
A nível fiscal, há uma reforma que não foi concluída, a de 2007 em que o imposto automóvel passou a ser o ISV, e o imposto municipal passou a ser o IUC. Houve aqui um grande agravamento: o IUC é um imposto que passou a ser muito mais pesado do que antes. O Governo central passou a receber 300 milhões de euros por ano que não recebia, porque o imposto era só para as autarquias. Neste momento, o Governo recebe 300 milhões de euros, e as câmaras outros 300 milhões. O que estava pressuposto, nessa reforma de 2007, era gradualmente retirarmos carga fiscal do momento da compra do veículo porque era compensado com essa receita do IUC que tem vindo a aumentar; isso nunca foi feito. O IUC foi um imposto que aumentou imenso face ao imposto anterior, e que desde 2007 cresceu três vezes mais do que aquilo que recebia antes. A descida gradual do ISV ao longo dos anos nunca aconteceu porque tivemos a primeira crise de 2010 com a troika, e na altura, os Governos sempre disseram que não era altura de reformas ficais. Agora, estamos outra vez num ano de pandemia, mas essa é a reforma que está por fazer: retirar a carga fiscal do momento da compra do automóvel. Isso é o único meio e medida que vai equiparar ou aproximar a carga fiscal portuguesa à de países como Espanha ou Alemanha. É a única forma de deixar os consumidores portugueses num plano de igualdade na compra de automóveis com os consumidores espanhóis ou alemães. O Governo nunca quis falar connosco nestes últimos anos. Ficou uma reforma por fazer nestes últimos anos. Os consumidores foram gravemente prejudicados porque passaram a pagar mais imposto de circulação, percentualmente, do que pagavam antes. Essa é a grande reforma.
A pandemia teve um grande impacto negativo no mercado: as vendas de automóveis caíram quase 34% em 2020. Este ano, até abril, caíram 4,5%…
A situação é de facto grave no mercado. Posso dizer grave porque continuamos com a maior queda percentual em todos os países da União Europeia. Até março, o mercado da UE tinha um crescimento de 3,2% – no acumular de março – e o nosso tinha uma queda de 31,5% – a maior da UE. A seguir a nós está a Roménia. Por exemplo, França tem um crescimento de 21% neste período. Já fechámos o ano de 2020 com a terceira maior queda, só tivemos a Bulgária e Croácia. Isto é grave porque reflete a ausência de medidas de estímulo da procura como há noutros países.
O Governo vai eliminar a isenção por ISV para os veículos comerciais, e também o IUC para a categoria D. Como é que olham para estas medidas que vão ser implementadas a meio do ano?
O sector foi apanhado de surpresa e já fizemos chegar o nosso protesto ao Governo. O sector automóvel é o principal sector exportador do país. Tem um peso fundamental na nossa economia, e ainda não houve qualquer sensibilidade para com este sector. A meio da pandemia, um responsável de uma associação do sector turístico disse que o Governo os abandonou: nós dizemos a mesma coisa. Mas além de não fazer nada, como ainda houve três situações de perda de benefícios e, portanto, há um agravamento de impostos. Neste caso, estamos a falar de veículos usados exclusivamente na atividade produtiva, ou seja, não são veículos de lazer, são usados em atividades como a logística, distribuição, etc. São veículos que, mesmo passando a pagar uma classe de 10%, porque é essa a definição, estamos sempre a falar de valores à volta de 3 mil euros. São situações que nos preocupam muito e acresce ainda o facto – ainda mais gravoso – de o líder de mercado desse segmento ser um veículo que é produzido numa fábrica em Portugal [Fuso no Tramagal, Abrantes]. Portanto, temos de ter aqui em conta que: estamos a falar do fim de m benefício que impacta a produção nacional, produzido numa fábrica portuguesa, que é a líder de segmento desse mercado. Houve aqui uma falta – isto já transmitimos ao Governo, naturalmente – de sensibilidade da parte do Governo para esse segmento, embora o Governo diga que tinha uma isenção de 100 e passam a ter uma isenção de 90, ou seja, passam a pagar 10%, mas esses 10% são 3 mil euros mais o IVA. Numa altura em que o que interessa é reduzir os custos, e não aumentar, não há qualquer justificação porque não é um veículo de lazer. É um veículo puramente de trabalho.
A produção automóvel em Portugal caiu 23% em 2020. É possível uma recuperação a médio prazo, tendo em conta que vários mercados de exportação estão em crise?
Tivemos um recorde de produção em 2019, mas em 2020 tivemos o problema que já se sabe: nomeadamente, o encerramento das fábricas e por isso houve esta descida. Neste momento, nós no primeiro trimestre temos um ligeiro acréscimo de produção de 8,6%. Há um esforço de retomar esta produção para valores normais para o país. 97% da produção é para exportação para os principais mercados internacionais, como a China, sendo que a maioria está situada na União Europeia, com a Alemanha, França e Espanha e depois o Reino Unido. Neste primeiro trimestre, o mercado francês está com um crescimento de 21% por causa da política de incentivos à procura. O mercado alemão está com uma ligeira descida de 6,4% que é inferior à nossa. Isto são aspetos positivos que levam a que não caiam tanto os mercados de destino das nossas exportações.
A ACAP tem vindo a alertar para os carros usados importados de outros países da UE, que, por terem mais anos, são mais poluidores. Continuam preocupados?
Sim. Não há harmonização da carga fiscal, e quando há países como Portugal com uma elevadíssima carga fiscal no momento da compra que contrastam com a situação em países como a Alemanha, é natural que depois haja esse tipo de fluxos que só atenuariam com essa harmonização. O consumidor português compra aqui um veículo, e é penalizado face ao consumidor alemão ou espanhol. Esse fluxo leva Portugal a ter uma situação igual à Polónia ou Roménia. Estamos a servir de destino de veículos usados. É um risco em termos de emissões e em termos de segurança rodoviária, mas esse risco seria menor com a harmonização da carga fiscal.
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