1. William Baumol e a “doença” dos custos
2. As pessoas são como quartetos de cordas
3. Ir libertando o trabalho humano da batuta da produtividade

 

1. William Baumol e a “doença” dos custos

William Baumol, economista que esteve próximo de vencer o Nobel, tornou-se conhecido do grande público por ter descrito um certo comportamento da evolução dos salários que ficou conhecido por “doença de custos de Baumol”.

O que Baumol começou por notar é que há actividades produtivas mais susceptíveis a incrementos de produtividade do que outras, algumas, na verdade, insusceptíveis de quaisquer ganhos de produtividade. Contudo, quando as actividades com incrementos de produtividade aumentam por isso os seus salários, também as outras actividades, mesmo se insusceptíveis de ganhos de produtividade, tenderão a acompanhar o aumento salarial.

É célebre o exemplo limite que Baumol dá para ilustrar a situação — A execução de um quarteto de cordas de Mozart demora exactamente o mesmo tempo e implica o mesmo número de instrumentistas agora como há duzentos anos. Pura e simplesmente, não é possível aumentar a produtividade de uma interpretação musical. Contudo, os salários não deixaram de acompanhar aumentos registados no todo da economia, tornando cada vez mais dispendioso levar a palco um quarteto de cordas.

O que se paga por um smartphone paga cada vez menos quantidade de horas de trabalho de um instrumentista com anos de estudo e prática. E isto, que é válido emblematicamente para uma interpretação musical, é igualmente válido para grande parte do sector de serviços. Também os serviços de saúde, de educação e, em geral, todos os que implicam estar com outros, desde massagistas a barbeiros, não podem ser apressados como discos postos num gira-discos a altas rotações. E não é diferente para todas as actividades de natureza criativa, seja artística, literária ou científica.

Com a identificação deste fenómeno, Baumol ofereceu uma explicação de como as economias desenvolvidas registam uma tendência de queda nos ganhos de produtividade por o seu crescimento se sustentar cada vez mais no sector de serviços. E como bónus deu ainda uma boa resposta a todos os que acham que o Estado não é bom gestor porque não é capaz de incrementos de produtividade. Na medida em que as actividades que cabe ao Estado gerir são, por regra, desse tipo, é claro que o Estado deixa de poder ser responsabilizado pela sua falta intrínseca de produtividade.

Contudo, esta linha de argumentação pode ser parcial, mas significativamente contestada. Não é verdade que o sector dos serviços não seja passível de grandes incrementos de produtividade. Por alguma razão,  muitos serviços do Estado social são apetecíveis para uma gestão privada. E mesmo o exemplo emblemático da interpretação musical não é imune à rentabilização – as interpretações ao vivo tendem a ser substituídas por interpretações gravadas que, em seguida, são reproduzidas industrialmente. Algo semelhante acontece, por exemplo, nas universidades com a possibilidade de aulas à distância ou de cursos gravados acedidos em plataformas online. Ou na área da saúde com certos exames de diagnóstico médico mais comuns a poderem dispensar os próprios médicos.

Só um núcleo duro das actividades de serviço permanece impermeável à lógica dos incrementos de produtividade, mas esse torna-se tão caro que tenderá a transformar-se em luxo, de bens raros excepcionalmente fruídos. Será assim com interpretações ao vivo  de música erudita ou “lectures” de catedráticos, ambas deixadas para momentos extraordinários. Segundo esta linha de raciocínio, o importante nem é que tudo se industrialize, mas que a parte que não consegue acompanhar o imperativo da maior produtividade não tenha um papel e um peso mais do que marginal no todo da economia, mesmo que esta prossiga a tendência de assentar sobretudo no sector de serviços. E assim economias muito desenvolvidas têm ao seu alcance uma cura para a “doença” de Baumol.

 

2. As pessoas são como quartetos de cordas

Mas será que é isto que devemos desejar para o futuro? Não serão justamente as actividades que mais resistem aos incrementos de produtividade as mais afins à vida social? E então não deveríamos fazer tudo para evitar confiná-las a uma alta roda do luxo raro, que não desce ao comum dos mortais? Nesse caso, a “doença” de Baumol deveria curar-se não pela raridade mas pela contaminação. Caso para dizer: venha de lá então uma epidemia de Baumol.

Se há que diferenciar o trabalho que se quer e o trabalho que não se quer humanamente, o trabalho que se deve conservar para as pessoas e o que se pode (e deve) deixar aos robots, tal diferença deve ser encontrada precisamente no que poderíamos baptizar como “critério de Baumol” — portanto, na relação com a possibilidade de incrementos de produtividade, e já não apenas na verificação do facto de haver ou não exploração associada ao trabalho, como sempre foi o coração da reivindicação sindical.

Mas o que tem de tão especial esse trabalho impermeável à produtividade? As pessoas são seres intrinsecamente temporais, mais facilmente comparáveis a peças musicais, como a que menciona Baumol, do que a objectos como jarras deixadas em mesinhas de canto sem que lhes mudem as flores. Não só cada pessoa, mas ela e as suas relações, os casais, as famílias, as comunidades não são o que são sem uma referência ao seu futuro e ao seu passado, a um tempo seu portanto. Duram como as jarras, mas, além disso, são temporais. Alongando a comparação, são como duetos, quartetos, orquestras inteiras, embora com muito mais improvisação que um quarteto de cordas de Mozart, cujo final já conhecemos. Sartre bem dizia que só captamos a essência de uma pessoa na sua biografia, como quem diz: depois de interpretada uma vida.

Tudo isto abona a favor da ideia de que as actividades laborais que respeitam este critério de Baumol são mais humanas, tanto mais humanas se tão intrinsecamente temporais quanto as pessoas. E devem ser resgatadas da escassez a que estão condenadas num tempo de obsessiva universalização da lógica da produtividade. Podemos mesmo considerar que este trabalho intrinsecamente indiferente à produtividade é um bem social e, portanto, um direito que deve poder ser fruído pela sociedade em geral.

Se precisamos de tempo para sermos o que somos (ou queremos ser), é claro que fazer-nos existir mais depressa é como pedir aos instrumentistas que façam o favor de estragar o quarteto de Mozart tocando-o em ritmo acelerado. E, no entanto, é precisamente o que cada vez mais se espera das pessoas nesta mitologia da produtividade que tudo acelera porque tempo é dinheiro.

 

3. Ir libertando o trabalho humano da batuta da produtividade

O que vivemos hoje é realmente uma esquizofrenia. De um lado, a necessidade de trabalhar, compulsória; do outro, a inacessibilidade crescente a oportunidades de trabalho. O que seria razoável e justo era o trabalho ser mais livremente escolhido, por um lado, e mais acessível, por outro. Paradoxalmente, passa-se exactamente o oposto. Tornado tão inacessível e tão necessário ao mesmo tempo, as pessoas são pressionadas a aceitar qualquer trabalho e a não fazerem caso da diferença estimável entre trabalho desejável e trabalho indesejável, comprando uma competição absurda, e depressa perdida, com máquinas.

A tecnologia e a automação deviam, a cada novo progresso, começar a dispensar-nos do que máquinas podem fazer melhor, libertando-nos para as actividades que levam o seu tempo, indiferentes ao ditame da produtividade. Lamentavelmente, o cerco da actividade humana pela automação é paralelo ao cerco da actividade humana pela produtividade. Quanto mais aquela, mais se espera esta da vida das pessoas. Como se uma reacção de “lashback” ao efeito de Baumol exigisse que se fique em dívida para com a produtividade não alcançada. Quando deveria libertar.

Competir com as máquinas, com o tempo e, finalmente, nesses termos, também com os outros, fazer da produtividade a regra de vida, é dar-nos uma vida de máquinas. Contudo,  fazer um caminho diferente é apenas uma questão de escolhas. Contra o trabalho compulsório, escolher garantir rendimento suficiente aos cidadãos para que o trabalho não seja uma condenação. Contra o privilégio de trabalho só para alguns, escolher alargar a ideia de  justiça distributiva de forma a incluir nela o direito universal de acesso ao trabalho que satisfaz o critério de Baumol.

O trabalho desta natureza, longe de um luxo raro, alcançável apenas sob uma competição sobre-humana — na verdade apenas uma espécie de simulacro da ideia de uma produtividade incrementada —, deve ser um bem comum a que todos têm direito social. Não como fonte de rendimento, mas de realização.

É pois uma boa ideia para o futuro ir libertando o trabalho humano da batuta da produtividade. E para que se restaure uma economia mais humana há que deixar às máquinas o outro trabalho, da economia da produtividade.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.