“All empires are created of fire and blood.”
A frase é dita por Paul Atreides, em Dune: Part Two, no limiar da sua transformação num imperador messiânico. A frase é fria, crua e inevitável. Porque todo o império, ainda que se pinte de civilização, nasce de uma escolha brutal entre hesitação e domínio. A política europeia, embora menos épica à superfície, vive hoje o mesmo dilema subterrâneo: quem hesita, dissolve- se. Quem decide, molda o futuro. Porque a política, tal como o cinema, tem horror ao vazio e à irrelevância. E na Europa de 2025, Paris começa a parecer cada vez mais uma personagem secundária que não sabe que o guião já mudou.
Durante décadas, o eixo Berlim-Paris sustentou a arquitetura da integração europeia. Era um casamento de conveniência entre a racionalidade industrial germânica e a ambição política francesa, forjado sob o espectro da guerra e mantido vivo pela ilusão da convergência. Mas essa aliança – essa ficção confortável – está a dissolver-se. Não com um estrondo, mas com um silêncio incómodo.
A fragilidade de Emmanuel Macron é, neste contexto, o sinal mais visível do colapso. Internamente, governa sobre um edifício político esventrado: um Parlamento fragmentado, um eleitorado exausto e uma contestação social crónica. Externamente, perdeu margem de manobra. Já ninguém o ouve com atenção, nem mesmo os seus aliados históricos.
Com Marine Le Pen temporariamente afastada, Jordan Bardella assume a dianteira de um movimento nacionalista eurocético que lidera todas as sondagens para 2027. E embora o Rassemblement National ainda tente conciliar a ambiguidade com a respeitabilidade, a verdade é que um futuro em que a extrema-direita assume o Eliseu não só é plausível – como é, cada vez mais, o cenário base. A França será, nesse dia, um parceiro instável, desconfiado da integração europeia, pouco disposto a manter o apoio à Ucrânia e relutante em partilhar o ónus da segurança continental.
É neste vácuo que emerge a geometria alternativa. Uma aliança informal, ainda sem nome, mas com contornos cada vez mais nítidos: Berlim-Roma. De um lado, Friedrich Merz – o novo chanceler alemão, herdeiro da ortodoxia ordoliberal, mas pragmático, austero, disposto a falar pouco e fazer mais. Do outro, Giorgia Meloni – a mulher que domesticou Salvini, secou a extrema-direita mais grotesca e, mantendo o vocabulário populista, assumiu o leme institucional com um à-vontade que poucos esperavam. Juntos, representam dois polos que, longe de serem antagónicos, começam a espelhar uma simbiose estratégica.
A recente visita de Meloni a Donald Trump não foi um capricho de vaidade diplomática. Foi um statement. Um gesto de antecipação, de quem sabe que o mundo pós-novembro já é radicalmente diferente – e que a Europa terá agora de se reposicionar para sobreviver.
Meloni propôs um acordo comercial transatlântico, anunciou o reforço da despesa em defesa, prometeu mais importações de gás americano e investimentos diretos nos Estados Unidos. Trump ouviu e aplaudiu. Mais ainda: aceitou o convite para visitar Roma e, implicitamente, reconheceu na primeira-ministra italiana uma interlocutora legítima. Uma espécie de Thatcher mediterrânica, conservadora e disciplinada, mas útil ao jogo maior da geopolítica.
Por muito que os europeístas clássicos se contorçam, há aqui uma lógica. A França tornou-se ruidosa, mas ineficaz. A Alemanha, sob Merz, procura estabilidade e foco. E a Itália de Meloni, longe de ser um “voo solitário”, posiciona-se como a ponte entre o continente e Washington. Não como mascote, mas como peça autónoma e útil. E isso diz muito sobre a mudança de ciclo.
Berlim precisa de um parceiro forte a sul, que não desestabilize o euro, que cumpra as regras da NATO, que não bloqueie a política externa comum — e que fale com os americanos quando os franceses se refugiam na sua velha arrogância jacobina. Itália encaixa, cada vez mais, neste papel.
É importante entender o que está a acontecer sem ceder ao romantismo. Não há aqui um novo eixo idealista. Há, sim, uma aliança de conveniência entre dois pragmatismos complementares. A Alemanha, que não quer sujar as mãos com o discurso populista, e a Itália, que sabe torná-lo útil sem perder a funcionalidade institucional. Enquanto Macron se debate com os escombros da sua própria presidência, Merz e Meloni compõem a nova partitura do realismo europeu. Uma partitura que fala menos de valores e mais de interesses – menos de visões e mais de estratégias.
O grande ausente neste novo mapa é Paris. E não por falta de talento ou de história. Mas porque perdeu o pulso ao tempo. A política externa francesa tornou-se errática, os discursos de Macron ressoam como monólogos de um Napoleão cansado, e a influência francesa nas capitais europeias encolhe à medida que Bardella cresce nas sondagens. Nem Berlim nem Roma têm tempo ou paciência para esperar por uma França que se afunda no seu próprio labirinto institucional.
Por fim, há um dado maior, que transcende a UE e explica esta aproximação germano-italiana: Trump. A sua presidência representa uma ameaça sistémica para a ordem multilateral europeia. Mas também representa uma oportunidade para quem souber ler os sinais. A crítica de Trump à Europa vai muito além das tarifas. É uma crítica estrutural ao modelo europeu: demasiado regulado, demasiado lento, demasiado dependente do soft power. O caso da Tesla em Grünheide é apenas um exemplo. Burocracias asfixiantes, prazos absurdos, exigências ambientais labirínticas — tudo aquilo que a América de Trump despreza. E que a Europa, se quiser sobreviver economicamente, terá de começar a reformar.
Meloni entendeu isso. Merz também. Macron, talvez já não tenha tempo. E por isso, a questão já não é se o eixo Berlim-Paris está morto. A questão é: quem vai escrever o seu obituário.