Independentemente do que se pense sobre a decisão do primeiro-ministro de se demitir face ao comunicado da Procuradoria-Geral da República do dia 7 de Novembro, parece-me inegável que estamos perante a demonstração de que é urgente e necessária uma reforma da Justiça, a principal e mais nobre função do Estado.

Nas sociedades ocidentais modernas, em que vigora o princípio da separação de poderes, a administração da Justiça é delegada nos Tribunais, que são órgãos de soberania com independência relativamente aos órgãos legislativos e executivos.

Em Portugal, a Constituição comete aos Tribunais “administrar a Justiça em nome do povo” e “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e os conflitos de interesses públicos e privados” e atribui ao Ministério Público “representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar (…) participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”. Para tanto “o Ministério Público goza de estatuto o próprio e de autonomia nos termos da lei”.

No plano dos princípios, nada a dizer. É do interesse público garantir que as potenciais violações da lei criminal sejam devidamente investigadas, e que, se houver matéria, os seus autores sejam acusados e julgados em Tribunal.

Mas é necessário que a investigação e toda a actuação subsequente sejam conduzidas em respeito pela legalidade e pelos direitos das pessoas, designadamente pela presunção de inocência, que é um dos princípios basilares da civilização Ocidental moderna, mesmo que haja constituição de arguidos ou acusação.

Bem como pelos princípios da proporcionalidade e da intimidade da vida privada, que impõem que não sejam causados danos ou inconvenientes desnecessários à vida ou imagem das pessoas, e que, caso danos desse tipo sejam causados, os seus efeitos sejam reparados na medida do possível. E pela competência exclusiva dos Tribunais para julgar e condenar, evitando-se a criação na opinião pública de presunções de culpabilidade.

Infelizmente, em muitíssimos casos, não é isso que sucede em Portugal. São inúmeros os exemplos de investigações criminais que se transformaram em espectáculos mediáticos, anunciadas publicamente antes de existir qualquer acusação.

Como se pode justificar que o público saiba através de notícias de jornais detalhes da investigação que deveriam estar em segredo de justiça? Quantas vezes se anunciou a constituição de arguidos, sabendo-se que aos olhos da opinião pública tal equivale a uma forma de acusação, que por sua vez induz imediatamente um juízo de culpa? Quantas vezes as investigações, mesmo com constituição de arguidos, acabaram sem acusação? E quantas vezes a acusação acabou em absolvição? Que medidas foram tomadas nesses casos para reparar os danos causados às pessoas que acabaram por ser inocentadas?

Mais. Como justificar os mega-processos, com milhares e milhares de páginas, cuja investigação durou tanto tempo que se corre o risco de prescrição, a não ser pelo efeito mediático – será porque os acusados, na sua defesa, fazem uso dos direitos que a Lei (e bem) lhes reconhece? Como aceitar que se realizem escutas telefónicas durante anos a fio, quando métodos desse tipo deveriam ser excepcionais e meramente pontuais?

E como pode suceder que tantos desses processos acabem por se revelar mal fundamentados, e as acusações, quando surgem, se resumam a uma fracção do que se apontou como indiciado? E como justificar que existam lapsos relevantes nos processos, como sucedeu no processo “Influencer”, se não pela pressa de conseguir a exposição mediática resultante de os visados serem quem são, que levou a evidente falta de cuidado e atenção?

O processo “Influencer” é apenas a proverbial gota de água num copo já muito cheio. Teve como consequência uma crise política. Mas a reacção do primeiro-ministro devia ter sido prevista. É um cenário que não se pode admitir que não tenha sido considerado. E que pensar se não o tiver sido? E se o tiver sido?

É urgente mudar este estado de coisas. O quadro actual está a tender para a criação de um cenário de judicialização da política, que é pelo menos tão indesejável como o de politização da Justiça.

É imperioso que os principais partidos políticos – pelo menos os do chamado “arco da governação” – se entendam, num pacto de regime, para redesenhar o funcionamento da Justiça em Portugal, para que a investigação criminal seja conduzida segundo regras compatíveis com o Estado de Direito, e com a preservação dos direitos fundamentais, da liberdade e da legalidade democrática.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.