1. Em África, no continente onde a Humanidade foi detetada em primeiro lugar, o papel do mais velho ainda hoje é especialmente valorizado. Pese a globalização e as alterações por ela introduzidas no seio das comunidades tradicionais, a idade continua a funcionar como atestado de conhecimento e sabedoria. As famílias têm o seu mais velho. Os países também. E é de lá que nos chega a frase: “um velho que morre é uma biblioteca que arde”.

Na Europa, imersa no labirinto do hedonismo, esse papel foi sendo perdido. É bastante mais sonorizado o estéril soundbyte de um protagonista da moda, seja qual for o setor de atividade, do que a reflexão produzida por uma experiência de vida. São poucos os homens mais velhos que escapam a esta lei. Talvez por isso tenha sido especialmente reconfortante a curta entrevista de Ramalho Eanes, na noite da passada quarta-feira, na RTP, concedida à jornalista Fátima Campos Ferreira.

2. O ex-Presidente da República não nos trouxe nenhuma informação relevante. Não nos deu qualquer novidade económica ou financeira. Não mostrou possuir o segredo para a vacina do coronavírus. E, no entanto, aqueles 30 minutos foram extraordinários, pelo humanismo, pela sensibilidade, pela sabedoria, pela capacidade de falar em amor e sofrimento a propósito da liderança, social e política, de trazer para a primeira linha a defesa da dignidade do homem e da mudança que é necessária para construir um novo mundo, mais solidário. Era um exercício difícil. Poderia redundar numa peça piegas. Acabou num fantástico momento de televisão, útil para o país, onde o sentimento aflorou mas não abafou a lição.

3. Convém lembrar aos mais novos que Ramalho Eanes nem sempre foi este ser humano que agora podemos escutar. E isso acrescenta valor ao percurso do homem.

O General que recusou ser Marechal; que prescindiu de um milhão e 300 mil euros de retroativos de uma reforma a que tinha direito; que presidiu a Portugal durante dez anos (entre 1976 e 1986); que a História tornou no militar mais importante do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, fundador da Democracia; que recebeu condecorações de mais 20 países; que inspirou e dirigiu um partido (o PRD) sobre uma defesa da ética que obviamente esbarrou na fragilidade humana, e por isso se extinguiu; que levanta a voz contra a corrupção porque não admite que se mate assim um ideal – esse Homem nem sempre foi capaz de comunicar desta forma.

Também aí esta entrevista revela um percurso. O militar tímido, corajoso, capaz de “andar  à estalada” na rua numa campanha política e que pedia conselhos para enfrentar as conversas de Estado nas cerimónias solenes da sua mais mediática missão, deu origem a este Ramalho Eanes que Portugal pode e deve ouvir com atenção, porque ele é capaz de ensinar humanidade, de transmitir esperança, de comover pela dignidade, pelo sentido que dá ao existir, de nos fazer pensar sem vergonha dos sentimentos.

4. A vida não acaba na escola, num quartel, em qualquer palácio, mesmo que em Belém. Um homem vai por essa vida e pode tornar-se, produto de experiências várias, numa referência coletiva, numa pessoa ainda melhor. Ramalho Eanes concluiu um doutoramento, em Navarra, já passava dos 70. Hoje tem 85. E dá-nos lições. Venham outras.