Por uma economia para a felicidade
Desde a Revolução Industrial, e da expansão e consolidação globais do Capitalismo, que o mundo se tem vindo a tornar obcecado com a designada “dimensão económica da vida”.
A abundância de produção, que a conjugação daqueles dois mecanismos proporciona, faz com que as pessoas e as sociedades possam alimentar os seus desejos de consumo de bens e serviços, anseios esses que estão sempre a aumentar dadas as inovações que são apresentadas incessantemente.
Se a Revolução Industrial (e a concomitante especialização laboral) proporcionou aumentos de produtividade nunca antes vistos, a tecnologia social a que chamamos capitalismo cria a dinâmica necessária para que a sociedade se organize de forma a exponenciar e perpetuar essa orientação produtivista.
O resultado é a consolidação de uma sociedade global em que os indivíduos se encontram enredados numa teia de produção e consumo, supostamente favoráveis ao seu bem-estar. Adquirem formação escolar que lhes permite serem cada vez mais especializados no mundo profissional, seguidamente entram na cadeia produtiva com competências cada vez mais específicas e auferem remuneração que utilizam em consumo, poupança ou investimento, alimentando incessantemente o engenho, que responde com transformações tecnológicas (materiais e culturais) em aceleração contínua.
Se é verdade que este mecanismo circular dá provas cabais de funcionamento ao nível da produção de bens e serviços (nunca a humanidade teve tanta capacidade de produção per capita), já não é linear que esteja a contribuir para o máximo bem-estar ou felicidade.
O argumentário que tem sido utilizado na defesa do capitalismo global em que vivemos diz-nos que este é o único sistema que garante uma boa utilização dos recursos produtivos (incluindo o ser humano) e da informação referente às vontades das pessoas. Mais, este seria o sistema que permite maior liberdade de actuação dos agentes económicos, liberdade essa que casa bem com sistemas políticos que permitam a autonomia individual, como as democracias liberais. Da junção do capitalismo e da democracia surgiria a melhor combinação possível para a humanidade: alta capacidade produtiva e liberdade de escolha.
Sendo certo que a Revolução Industrial, o capitalismo e a globalização já conseguiram tirar da pobreza absoluta milhões de seres humanos – e, muito provavelmente, continuarão a fazê-lo, à medida que o capitalismo e as tecnologias se vão instalando nas regiões mais pobres do globo – há muitos problemas que perturbam a humanidade que não estão a ser combatidos. Mais, há outros que se estão a agravar.
À escala mundial, para além do PIB per capita em contínuo crescimento e da já referida taxa de pobreza absoluta a diminuir, temos uma esperança média de vida a melhorar, taxas de mortalidade infantil a decrescer, taxas de fertilidade a convergir para os 2 (a taxa de substituição populacional), e acesso a bens e serviços fundamentais cada vez mais globalizados (como saneamento, electricidade, habitação, saúde ou serviços e infra-estruturas de comunicação e transporte), persistem velhos problemas e surgem novos.
Temos o eterno problema das guerras que não desaparecem, velhos e novos terrorismos, discriminações económicas, étnicas, religiosas, de género e de orientação sexual, tráfico de armas e de seres humanos.
E temos uma desigualdade a aumentar para patamares insuportáveis; novas formas de criminalidade económica; evasão e elisão fiscal de montantes nunca vistos; brechas de cibersegurança; problemas de saúde mental a disparar (depressão e burnout); diminuição do poder das democracias nacionais, populismos e ameaças às democracias liberais e sociais; precariedade laboral, ameaças ao emprego e tempos excessivos de trabalho; financeirização do capitalismo (com o consequente agravamento da instabilidade económica); aquecimento global, riscos ambientais (tempestades, secas e inundações), desflorestação, poluição dos mares e da atmosfera, extinção de espécies animais e vegetais; migrações económicas e de guerra e congestionamentos populacionais; aumento da solidão e perturbação das relações familiares e de proximidade (amizade, vizinhança, colegas); excessiva agressividade e competitividade.
Enfim, torna-se evidente que a dinâmica global da contemporaneidade é capaz de conciliar crescimento económico com a persistência de muitos problemas e com o agravamento de outros.
Sabendo-se, como hoje se sabe, através dos resultados da investigação científica na felicidade (nas Neurociências, na Economia, na Psicologia), que a qualidade e o tempo das relações interpessoais, o ter emprego (com segurança e que nos realize), ter rendimentos que nos permitam estar próximo dos demais, existir baixa desigualdade, existir paz e baixa criminalidade, não perder demasiado tempo com deslocações casa-trabalho, ter liberdade e participação política e cívica, ter saúde nos diversos escalões etários, ou, mais profundamente, termos as condições objectivas para nos realizarmos enquanto seres humanos são os determinantes de um vida feliz, percebe-se que não podemos confiar nos mecanismos automáticos do capitalismo e do crescimento económico para garantirmos a felicidade.
Antes, temos que utilizar todos os conhecimentos e instrumentos (nomeadamente de medida da felicidade) que as aludidas investigações nos proporcionam para calibramos o sistema na direcção da felicidade. Devemos aproveitar o que o capitalismo e a globalização têm de bom na produção descentralizada de bens e serviços, balizando e corrigindo trajectórias, através da intervenção política, para que o resultado final seja uma maior felicidade mundial, não apenas um mundo mais cheio de coisas.
A felicidade também tem que ser sustentável
Compreendendo que não podemos confiar apenas nos mecanismos automáticos e descentralizados do capitalismo para promover a felicidade colectiva, mas que existem formas de calibrar esse sistema na direcção pretendida, temos que reconhecer a sustentabilidade da felicidade como o grande objectivo da humanidade.
Sendo a sustentabilidade uma palavra que entrou no discurso contemporâneo a propósito do ambiente, do planeta Terra, ou mesmo do crescimento económico, o conceito invoca uma ambição que deve ser universal: perspectivar os impactos das nossas acções não só no imediato, como no tempo mediato. A felicidade, por maioria de razão de ser o objectivo fundamental da humanidade, tem que ser defendida a curto, médio e longo prazo.
Mais, como a felicidade que se pretende maximizar é a felicidade colectiva e individual, temos que ter em conta que a média não é tudo. Temos que pensar na felicidade mediana (a felicidade do cidadão comum) e nos níveis de desigualdade de felicidade entre as pessoas (para não acontecer a felicidade média aumentar à custa de uns quantos cidadãos muitos felizes e outros muito pouco felizes).
Não focar tudo no curto prazo (a felicidade de hoje), nem esquecer as desigualdades, é fundamental para assegurarmos que estamos no bom caminho, o de termos uma felicidade sustentável, não só para os contemporâneos como para os vindouros.
Seguramente que as preocupações da sustentabilidade ambiental e económica já ajudam na persecução da felicidade sustentável. Porém, como economia e ambiente são apenas meios para se atingir o fim, que é a felicidade, a sustentabilidade dos meios não garante a sustentabilidade do fim. Assim, precisamos de uma monitorização permanente e global da felicidade dos indivíduos e das sociedades, para fazermos as devidas avaliações e calibrações de política, para além de darmos à ciência os dados necessários à melhoria do conhecimento sobre os determinantes da felicidade individual e colectiva.
Note-se, ainda, que, para além dos desafios da desigualdade, a compatibilização da felicidade individual e colectiva não é automática, na medida em que, por vezes, o que é bom para um não é bom para os outros e vice-versa. Aquilo que cada indivíduo faz na busca da sua felicidade pode ser prejudicial à felicidade de outros, depender da infelicidade de outros ou ser incompatível com a felicidade dos demais.
Um exemplo claro pode ser aludido: os estudos demonstram que as pessoas religiosas tendem a ser mais felizes que as não religiosas (tudo o resto igual). Por outro lado, a História mostra como as religiões têm sido responsáveis por mortes, sofrimentos atrozes, infelicidade, porque cada uma é incompatível com as demais (só uma pode ser verdadeira…). Neste caso, o que é bom do ponto de vista individual, deixa de o ser do ponto de vista colectivo.
A lição é que a felicidade só faz sentido ser for sustentável (no tempo e no espaço), e isso só sucede se formos capazes de monitorizar a felicidade, estudar os seus determinantes e compatibilizar indivíduo e sociedade com a maior igualdade possível no bem-estar.
Por um círculo virtuoso de felicidade no séc. XXI
Nos pontos precedentes foi identificado a existência de um circuito económico que tem demonstrado enorme vitalidade e pujança, permitindo aos seres humanos alcançar níveis de abundância material nunca antes observada. Essa abundância tem possibilitado que se atinjam objectivos muito relevantes, mas com custos elevados: sobrecarga ambiental e humana. O resultado final é que não tem sido capaz de garantir a felicidade.
Assim, ao pensarmos o problema humano da felicidade, temos que ter uma visão holística e entender as relações intersistémicas: circuito económico, circuito ambiental/biológico, circuito político.
Quando cruzamos os circuitos ambiental e económico, deparamo-nos com os problemas da sustentabilidade e da poluição; cruzando os circuitos político e económico surgem as problemáticas dos ciclos político-económicos, dos direitos laborais e da produtividade, do comércio internacional e do poder de mercado ou da regulação da concorrência; cruzando o ambiente e a política, vemo-nos perante as questões dos acordos internacionais de controlo das alterações climáticas, entre outros.
A estes macro circuitos juntam-se outros, ao nível das organizações e dos indivíduos, que adensam as teias de complexidade. As respostas aos problemas só poderão ser encontradas percebendo como funciona cada circuito, individual e interactivamente, e que dinâmicas automáticas são congruentes com a felicidade sustentável e quais são divergentes.
Algumas das tecnologias sociais que vão surgindo, como a economia circular, a economia da partilha ou a economia de redes, ou tecnologias informáticas como o blockchain, as redes sociais, ou a Inteligência Artificial, são já respostas à complexidade das dinâmicas dos circuitos referidos (todas com impactos na economia, no ambiente e na política), mas nenhuma delas foi pensada para garantir a felicidade. Sabemos bem como cada uma dessas tecnologias pode ajudar a sociedade a ser mais feliz (porque facilita acções benéficas), mas também podem ser usadas para viciar as pessoas, controlar as suas informações, eliminar a privacidade, difundir mentiras, distorcer democracias e facilitar a evasão fiscal e a economia paralela ou a implantação de distopias.
O grande desafio que temos para o séc. XXI, depois de um século marcado por progressos materiais fortes, mas sociais incompletos, é a aposta deliberada na felicidade, sempre em regimes de democracia e liberdade (ambos são determinantes da felicidade), em que as engrenagens dos circuitos económico, político e ambiental sejam continuamente ajustadas para que a produção de felicidade seja o mais livre, automática e sustentável possível.
Isso vai exigir muito conhecimento, muita ciência, mas também muita educação para uma democracia global, para o respeito pela diferença e pela capacidade de absorção da complexidade e da inovação e pela criação de instituições globais que exerçam poderes de fiscalização cruzados que não permitam que nenhuma esfera (seja a financeira, a política ou judicial) tenha demasiado poder que desequilibre o sistema. Precisamos de criar um círculo virtuoso de felicidade, em que a produção de bens e serviços e a arquitectura institucional sejam conducentes a uma felicidade sustentada e auto-reforçada.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.