Na sociedade contemporânea, tão presa ao mito da juventude e do não envelhecimento como ao do consumo da novidade, a irreversibilidade vivida na vida é repelida. No lugar desse mal, como um grande bem, ocupa-se todo o espaço da vida com o culto da reversibilidade. Como se dessa maneira se esconjurasse a morte da vida. Na verdade, como se não tivéssemos passado pela vida. E esse é o paradoxo: o “império do efémero”, de que falava Gilles Lipovetsky já em 1987, é um culto da vida que, ironicamente, a suspende.

Nas suas causas, esta aversão à irreversibilidade não pode ser separada da aceleração do tempo social. Fluxos de capitais, de informação, desejos de consumo, aceleram. Se forem desmaterializados, ainda mais aceleram, libertos de constrangimentos físicos. Puro movimento de circulação e crescimento. Na luta por mais e mais depressa, a novidade é tomada como velha cada vez mais cedo, e trocada por outra, sem lugar para a que é substituída, despromovida a lixo a apagar, sem compromisso com o envelhecimento, sem possibilidade de reaparição. Sobreviver, significa conservar-se jovem, não importa a idade.

Por seu turno, a cultura do quotidiano afeiçoa-se às exigências destes tempos acelerados, torna-se hipermoderna, não deixa o irreversível acontecer e acontecendo não o deixa valer. Por um lado, emburra diante da irreversibilidade, seja a das alterações climáticas seja o do envelhecimento de cada um. Por outro, torna-se um prodígio de adiamento, seja no que toca a mudar de paradigma, recusando-se a ver o que há de insustentável na sustentabilidade que se obstina em não mudar comportamentos, seja a entrar na vida adulta, conservando-se o tempo todo como nada ainda tivesse principiado, só ensaio reversível.

Este esforço de adiamento nada tem que ver com procrastinar, mas com conservar o império do reversível: serve para normalizar a catástrofe de vidas cada vez mais adiadas. A era da aceleração é, também, a das vidas adiadas. Dizem que não faz mal, ainda seremos jovens quando formos velhos, é tudo uma questão de mentalidade… ou de suspensão.

O que parece uma utopia de liberdade é mais uma distopia de suspensão para a humanidade. E pode falar-se de suspensão, mas também de desligamento. Ainda no século passado, Jean Baudrillard, dava precisamente conta de como o envelhecimento e a morte se tornaram o tabu da sociedade ocidental ao mesmo tempo que dava conta do curso de um crime perfeito, sem rasto, que substitui o real por um simulacro. As duas coisas estão mais ligadas do que talvez se esperaria.

A própria morte, até agora fisiologicamente inevitável, essa que era a irreversibilidade letal da vida de cada um, pode perder o seu carácter definitivo na ficção cada vez mais realista de uma pós-vida digital que transcenda, de forma muito definitiva, o quotidiano da irreversibilidade.

A suspensão da irreversibilidade

Numa obra de 1966, precisamente intitulada “A morte”, o filósofo francês Vladimir Jankélévitch, pensou a mortalidade no viver a partir da ideia de irreversibilidade. Para ele, tudo o que acontece acontece na medida em que se vai tornando irreversível. E nessa percepção de irreversibilidade que nos vai ficando vive-se um sentimento de mortalidade.

“A irreversibilidade é a própria temporalidade do tempo”, escreve Jankélévitch. Poderia haver uma pluralidade de temporalidades, entendidas como maneiras diferentes de viver o tempo, culturas do tempo, umas mais lentas e distendidas, outras mais aceleradas e comprimidas, umas mais ritmadas por ciclos que repetem um reencontro com um certo estado de coisas, outras mais ritmadas pela direcção rectilínea da acumulação e do progresso, etc. Mas, todas estas temporalidades são atravessadas por um aspecto comum na relação com o tempo: a irreversibilidade.

Ao contrário do espaço que se pode percorrer numa direcção e na direcção oposta, o tempo tem uma só direcção que não pode ser percorrida de volta. A seta do tempo é dada pela 2.ª lei da termodinâmica, de acordo com a qual a entropia tende a aumentar e, em todo o caso, nunca diminui.  Curiosamente, a teoria termodinâmica exprimiu uma situação em que a ciência não se fez em ruptura com o senso comum, ao contrário do que dizia o grande epistemólogo Gaston Bachelard.

É, aliás, interessante notar como a percepção de senso comum da irreversibilidade do tempo natural converge com a natureza quotidiana dos exemplos mais habitualmente dados de circunstâncias de aumento inevitável de aumento da entropia: um copo que se quebra não se recompõe espontaneamente, um dispositivo de refrigeração não arrefece um compartimento sem, para isso, produzir mais calor fora desse lugar, o fumo que sai por uma chaminé criando formas enoveladas não reentra do mesmo modo que sai pelo entrada do tubo da chaminé.

Pode, contudo, perguntar-se se é mesmo necessário viver o tempo como irreversível mau grado a sua irreversibilidade de fundo? Não poderá contornar-se a irreversibilidade do tempo no modo como escolhemos com ele nos relacionar? Não podemos enganar a irreversibilidade como enganamos a entropia num dispositivo de refrigeração? Como um frigorífico que arrefece à custa do aumento de entropia em volta, não poderá acontecer fecharmo-nos em um mundo refrigerado de tal maneira que deixe do lado de fora toda a irreversibilidade? Tudo isto já não estará a acontecer e a levar-nos para uma vida de simulacro?

As respostas a estas perguntas são perturbadoramente convergentes – é claro que nos podemos ir desenhando um mundo social tão desligado que nele a irreversibilidade não seja mais do que uma externalidade negativa.

Uma questão de design portanto. Por exemplo como a da “Matrix”. O sentimento de realidade que persuade Neo, o herói da saga, a escolher, no primeiro e melhor episódio, tomar a pílula vermelha que o leva para a “realidade real” (em vez de tomar a pílula azul que o faria esquecer os factos mais recentes e manter-se na “realidade simulada”, simulacro, sem disso ter consciência) não é estranho a uma compreensão de como o irreversível é real e há algo de fake no reversível.

As coisas que se podem repetir como se nada fosse irreversível são um simulacro, não nos empastam na matéria do mundo, não nos ligam nele. Tal ligamento só pode ser ganho pela irreversibilidade. Já a reversibilidade nada ganha, só tenta não perder, jogar pelo seguro, num sentido muito próximo da inflação securitária da sociedade contemporânea, que se encasula em social media e outras cercas. Contudo, a era que vivemos adopta a preferência inversa de Neo: preferir o reversível ao irreversível, mau grado o preço a pagar de um regime de simulacro. De certo modo, já estamos a ser tomados por uma Matrix criada por nós mesmos e que a cada momento nos convence a tomar a outra pílula.

A vida acontecer irreversível é mortalidade

Para Jankélévitch, acontecer é passar irreversivelmente. E está em linha com a Física, o senso comum, até com a Teologia – nem a omnipotência divina incluiria, sem discussão infindável, o poder de desfazer o passado. Esta irreversibilidade do acontecer é geral, mas tem na irreversibilidade da morte uma estrutura última, como se a morte fosse o acontecimento completo do acontecer. Todos os outros acontecimentos pressupõem algum horizonte de reversibilidade, no sentido de algo que se pode dar outra vez, tornar a ser feito, apesar da irrepetibilidade de fundo. Por isso, a morte é o acontecimento derradeiro não apenas no sentido de ser o último, mas no sentido de ser o acontecimento que, no seu movimento de acontecer, é pleno – só na morte o acontecimento se perfaz inteiramente. A morte não deixa nada por acontecer.

É famoso um pensamento de Heidegger segundo o qual a morte é a mais autêntica possibilidade, por um lado possibilidade inescapável, por outro lado que não chega a efectivar-se para ninguém, pois quando chega já não nos encontra. Mas, um raciocínio semelhante pode fazer-se tendo por fulcro a ideia de acontecimento: a irreversibilidade vivida ao longo da vida é o acontecimento da vida que se consuma definitivamente no acontecimento da morte.

Uma vida vive-se tornando-se mais irreversível, ganhando mortalidade, tornando-se um acontecimento único e singular. Mas como irreversibilidade criada e escolhida e não como fatalidade. A irreversibilidade deve resultar da própria ordem do viver. Morrer-se soberanamente e não às mãos das circunstâncias é a vida acontecer, finalmente consumar-se. A morte violenta, trágica ou obscena, tem em comum o contrário: uma irreversibilidade que não resultou da vida, mas da impiedade de outros, ou da natureza, ou do infortúnio. Essa não é nem uma vida nem uma morte boa.

Mas por que importa a irreversibilidade e um presumível sentimento de realidade da vida? É um crescimento ontológico. Amadurecemos na medida em que vamos preferindo a irreversibilidade ganha à reversibilidade conservada. Uma criança tem todas as possibilidades diante de si, toda a reversibilidade ao seu dispor, pelo menos comparativamente com todas as outras pessoas mais velhas. Mas o seu crescimento faz-se de ganhos de irreversibilidade através de escolhas que, numa existência concreta, com outros, fazem um caminho de sentido.

As irreversibilidades ganhas na vida plena são muito bem ilustradas por decisões como a de escolher uma vida, ou mudar de vida, comprometer-se com um futuro, mesmo que para isso se tenha de largar um passado. Por exemplo, os filhos crescem-nos para sempre, o que significa que não os teremos nunca mais como as pequenas crianças de colo que foram, e que nisso morremos de saudades deles, mas significa, além disso, que deixamos a nossa pele existencial naquela irreversibilidade que as  palavras “para sempre” gravam como uma tatuagem ou título de um romance de Vergílio Ferreira que também começa com essas palavras. A promessa do amor para sempre tem tudo que ver com esta vontade de irreversibilidade, que é uma mortalidade ganha. “Para sempre” não tem de significar conformação a um destino quando pode significar destinação livre.

Uma modesta imortalidade

Na sociedade contemporânea, acelerada, a paragem do tempo envolvida na obsessão por permanecer jovem passa muito por uma percepção da liberdade como conservação de todas as possibilidades abertas aconteça o que acontecer, uma certa percepção de poder e vitória sobre a vida em ir vivendo sem perder nenhum poder de reversão. Há nisto uma soberba perigosa que recusa a própria vida e o que nela é maravilhoso: destino que se vai destinando ao longo de uma existência que é, a cada fôlego, a cada emoção, a cada escolha, uma possibilidade de ir morrendo vivendo.

A coragem de trocar o reversível pelo irreversível pode ser simplesmente a da criança que tira os pés do chão quando tenta aprender a andar de bicicleta. Sabendo que precisa do balanço para se equilibrar, sabendo que precisa de tirar os pés para ganhar o balanço. Há um risco, é preciso confiar, deixar o mundo entrar-nos na vida. É como os dados estarem lançados de que falava Júlio César ao passar o Rubicão: joga-se o irreversível e assim joga-se o acontecimento. Mais que os dados, lançou um acontecimento.

O sentimento da mortalidade tem que ver com esta experiência de real ganho. O “Para sempre” ressoa este ganho de mortalidade que liga ao mundo. A realidade que proporcionamos na irreversibilidade ganha está não em nós próprios, mas distribuída num “para sempre” que se deixa. O sentimento de mortalidade é, por isso, também de uma modesta imortalidade.

Milan Kundera começa o seu maravilhoso romance “A Imortalidade” com a descrição do gesto gracioso de uma senhora de meia-idade numa piscina, gesto de um encanto sem idade, independente do tempo. E daí segue o narrador para uma reflexão que conclui que essa distração da idade não é inesperada, que, pelo contrário, só em circunstâncias excepcionais estamos conscientes da nossa idade ou dos seus limites. A vida joga-se sempre toda enquanto for vivida, não importa a idade.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.