O passe ferroviário verde pode ser apenas uma excepção que confirma a regra. Mas seria cinismo fazer sucumbir ou relativizar, por isso, o apreço e o elogio que esta medida merece.

Desde logo, ao arrojo da medida, ao conferir acesso a toda a linha ferroviária nacional nos serviços intercidades, inter-regional e regional por um valor perfeitamente acessível, com o preço de um passe por 30 dias a equivaler ao preço normal de uma única passagem para boa parte dos destinos cobertos pela rede.

É um instrumento em favor da coesão territorial, que aproxima litoral e interior, norte e sul, sobretudo socialmente, ao eliminar a barreira do custo financeiro de atravessar este país de lés a lés. Praticamente todo o país fica à distância da paciência de fazer uma viagem, por vezes quebrada por uma ou outra ligação, formas de contemplar a paisagem, bastando entrar com o passe na carruagem, ou, no cado de um comboio intercidades, reservar um lugar num bilhete que indica no preço “zero euros”. Confirma-se assim, na prática, como a coesão territorial é uma forma de coesão social.

A medida foi tão desconcertante que chegou a haver suspeitas de que fosse uma forma de levar a ferrovia a um ponto de insustentabilidade económica. Mas é precisamente nesse quase paradoxo que está a tremenda visão da medida. A eficiência de uma política de transporte público não está prioritariamente no uso dos utentes sustentar financeiramente o serviço, assistidos por maior ou menor apoio do estado. Essa é uma lógica de transporte privado publicamente assistido.

Num transporte genuinamente público, o paradigma é outro: a sua eficiência está em ser plenamente usado, ou seja, em ter, tanto quanto possível, todo os lugares disponíveis ocupados, maximizando o uso (e não o rendimento) dos meios empregues. Comboios cheios, a chegar a grande parte do território nacional, a preços muito módicos é a maior eficiência que se pode esperar do investimento feito numa política pública.

No caso do passe ferroviário, pode falar-se mesmo de um ideal de eficiência integral, com várias camadas de sentido: por um lado, a maximização da democraticidade da mobilidade no território; por outro lado, a minorização do desperdício de uso de dinheiros públicos (esse é o ponto de finanças públicas relevante!); finalmente, e não menos, assim se faz caminho para uma transição de hábitos de mobilidade mais consentânea com as exigências da emergência climática.

A respeito de mobilidade, é bom repetir que a grande transição não está em passar do uso de automóveis movidos a combustíveis fósseis para o de automóveis eléctricos, mas de ambos para transportes públicos e de transportes públicos com cada vez maior independência de combustíveis fósseis. É o caso da linha férrea electrificada.

Decerto, faltam melhores comboios, melhores serviços, mais rede electrificada, restauração de linhas desactivadas, mais ligações. Mas, depois de décadas de desinvestimento quando não mesmo abandono, com a política de passe ferroviário vira-se a página da maneira mais inteligente. Se já sabíamos que importava, por todas as razões, apostar na ferrovia, o passe ferroviário dá um passo em frente ao tornar o investimento não apenas um ponto de partida, mas também a consequência natural da reemergente importância social da ferrovia.

De facto, o passe ferroviário activou a importância social, ecológica e de investimento público da rede ferroviária nacional. São já mais de 150 mil passes emitidos, 50 mil deles sempre activos, muitos deles de cidadãos com menos de 30 anos.

Desejavelmente, todos nós devíamos adquirir um passe ferroviário, para em algum momento o carregar com 20 euros por 30 dias, seja para ir trabalhar, passear no fim de semana, fazer férias. Era um grande acto de cidadania e coesão se, nas nossas carteiras, passássemos a trazer, bem junto do cartão do cidadão, um passe ferroviário pessoal e intransmissível. E ainda está por provar que há melhor forma de atestar como este país é belo do que à janela de um comboio.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.