Recentemente foi notícia um tweet de Elon Musk em que este afirmava, com orgulhosa convicção, que ninguém mudava o mundo a trabalhar 40 horas por semana. Mais, dizia que trabalhar na sua empresa não era fácil, todos trabalhavam num regime de 80 a 100 horas semanais, pois queriam mudar o mundo.

Neste post neo-esclavagista acerca da indispensabilidade de cargas de trabalho brutais, Elon Musk diz que é assim que tem que ser para quem quer ter o privilégio de “criar excitantes novos mundos de tecnologia”.

Elon Musk já é conhecido pelos seus dislates “twitteiros” – recorde-se a polémica ameaça de saída da Bolsa – e demonstra um ter temperamento difícil. Mas este bitaite de Musk é uma pérola, um resumo brilhante da sua ideologia, valores e visão do mundo: Musk considera que a mudança tecnológica é um bem, que a acção humana deve estar ao serviço dessa mudança e que tudo o mais são tretas.

Para este tipo de aventureiros tecnológicos, tão em voga nos dias de hoje, o que interessa é criar coisas novas (as tais novas tecnologias), causar o maior impacto possível, achando que estão a gerar admiráveis mundos novos. Ou seja, a introdução de tecnologias materiais teria um poder transformador da sociedade e dos indivíduos, sempre na direcção do melhor.

E é aqui que a “porca torce o rabo”: a história mostra-nos, e os grandes pensadores ensinam-nos, que essa visão é pueril e perversa. Na realidade, uma mudança tecnológica pode ser para o pior, pode até provocar a destruição da espécie humana (veja-se a bomba atómica). E mais, não são só as tecnologias materiais que têm poder transformador. Também as tecnologias sociais (ou imateriais) têm um profundo impacto na forma como vivemos as nossas vidas.

Quando as sociedades decidiram acabar com a escravatura, houve muitos que se opuseram argumentando que sem a escravatura a produção não seria rentável.

Mais tarde, as sociedades só conseguiram introduzir leis laborais onde se fixou o limite máximo das 40 horas semanais – 8 para dormir, 8 para trabalhar, 8 para o resto – depois de muito conflito, mais uma vez contra aqueles que defendiam que não era possível manter a indústria, ou fazê-la progredir, com tão poucas horas de trabalho.

A verdade é que, quer a abolição da escravatura, quer a introdução das 40 horas semanais representaram progresso tecnológico social que trouxe felicidade às pessoas, e foi compatível com o continuar, e aumentar, da produção e da produtividade.

Também a democracia é uma tecnologia social – fundamental para os direitos humanos e para a felicidade – que muitas vezes é posta em causa, com o argumento de que a democracia pode obstruir o progresso das tecnologias materiais.

Infelizmente, muitos dos empreendedores tecnológicos da actualidade estão obcecados em criar coisas novas, em tornar-se as pessoas mais influentes do planeta, em ganhar muito dinheiro e pouco mais – apesar de dizerem que querem mudar o mundo e salvar o planeta.

Curiosamente, muitas das grandes empresas tecnológicas tardam em dar lucros (e sem lucros são insustentáveis), acumulam dívidas astronómicas e desenvolvem tecnologias materiais que erodem as tecnologias sociais.

As tecnologias materiais são muito bem-vindas se se compatibilizarem com as mais altas tecnologias sociais e permitirem o progresso destas últimas (produzir carros eléctricos para diminuir as emissões de CO2 à custa da exaustão humana, seguramente, não é um desses casos).

Se assim não for, as tecnologias materiais podem ser anuladoras da democracia, da privacidade, da liberdade, da propriedade privada, enfim, abrir as portas para mundos terríveis, para distopias onde grassará a infelicidade. A Elon Musk e afins temos que dizer: liberdade, direitos humanos e felicidade primeiro; coisas tecnológicas depois.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.