Nos últimos dias tivemos alguns exemplos do que me parece ser uma degradação muito grave do funcionamento do sistema de aplicação de Justiça em Portugal, que vem já de há vários anos e se manifesta de diversas formas em todos os foros (cível, administrativo e criminal).

No foro cível, existe um círculo vicioso que resulta do excesso de litigiosidade que se constata na sociedade e de uma regulamentação processual que carece de simplificação e que incentiva a utilização de expedientes dilatórios e recursos, mesmo quando as questões parecem de simples ou fácil decisão. Só isto justifica que se repense todo o sistema. Se acrescentarmos a reconhecida falta de meios nalguns Tribunais, temos uma mistura explosiva para que os processos se eternizem, negando a justiça a quem dela necessita.

É certo que foram dados alguns passos positivos, por exemplo, com a criação dos Tribunais de pequena instância cível, que deveriam contribuir para reduzir o afluxo de processos aos Tribunais de Comarca. Mas sem que se revejam os critérios de fixação de alçadas, prazos, custas relativas a incidentes processuais, e de penalização da litigância de má-fé, articulando-os com adequadas garantias de acesso à justiça e defesa, o problema não será resolvido.

No foro administrativo, apesar de pelo menos em certas matérias as regras processuais terem sido simplificadas, existe ainda uma herança histórica de acumulação de processos, nem sempre por falta de meios, em que se eternizam decisões.

O problema mais grave, a meu ver, está no foro criminal.

Nas sociedades ocidentais, herdeiras de princípios filosóficos formulados no século XVIII, o Estado organiza-se segundo um princípio de separação de poderes, que, em termos muito simples, garante que os órgãos legislativos fazem as leis, que o Ministério Público é responsável, com independência face ao Parlamento e ao Governo, pela investigação de situações que correspondam a crimes cometidos em violação das leis, e que as acusações formuladas pelo Ministério Público são julgadas exclusivamente pelos Tribunais.

Como já disse, esta é uma missão nobre, que corresponde à aplicação da Justiça, que é a mais importante missão do Estado, da qual todas as outras decorrem.

Mas os mesmos princípios filosóficos que fundamentam a separação de poderes e a autonomia do Ministério Público, garantem também que a investigação criminal se deve processar com respeito pela presunção de inocência, pela legalidade dos actos necessários à averiguação dos factos, pela proporcionalidade dos meios empregues, pela desconsideração de quaisquer factos não relevantes, pela confidencialidade dos actos de investigação antes de elaboração de uma acusação, e pela celeridade adequada à busca da verdade material.

Infelizmente, são muitos os exemplos em que estes princípios têm vindo a ser desrespeitados em acções de investigação criminal. Essas situações, até pela sua repetição, não são admissíveis, e justificam uma revisão urgente da regulamentação que disciplina a actividade de investigação criminal.

Não se justifica que uma investigação dure anos, criando o risco de prescrição dos crimes investigados – a investigação deve ser célere e ter como principal objectivo a comprovação, sobretudo através de prova material e não indiciária, dos factos relevantes qualificáveis como crimes.

Não se justifica que a investigação seja consumida na elaboração de mega-processos, que dificultam a elaboração da acusação sem garantia de um efeito proporcional na moldura penal a aplicar – a investigação deve ser eficaz e concentrar-se em factos cuja sustentação probatória seja mais fácil de conseguir, sem prosseguir objectivos de mediatização, que também não são compatíveis com a garantia de confidencialidade e de presunção de inocência.

Não se justifica que a investigação ocupe um número muito relevante de inspectores e magistrados quando a qualificação dos factos em causa como crimes seja de difícil sustentação – se existir uma dúvida razoável de que os factos possam ser, efectivamente, qualificados como crimes, a investigação não deve sequer prosseguir para a fase de obtenção de provas.

Não é admissível que os actos de investigação sejam previamente comunicados aos órgãos de comunicação social, que até chegam ao local onde vai ser efectuada a acção antes dos próprios inspectores – as actuações desse tipo, para além de serem incompatíveis com a preservação do segredo de justiça, criam um ambiente de espectáculo de circo e induzem na opinião pública uma convicção de culpa, absolutamente em contrário ao Estado de Direito e da ideia de Justiça.

Urge corrigir rapidamente este estado de coisas, para que não se venha criar um sistema justicialista incompatível com a defesa da Liberdade.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.