Nota prévia: debater ideologia só faz sentido usando a racionalidade e a lógica. Infelizmente, o que mais se vê são discursos fanáticos a propósito de política. Acredito que, no espaço público, temos a obrigação de desconstruir as argumentações falaciosas e inflamadas. Como defensor da social-democracia, escrevo este texto sem nenhum viés “clubístico”.

Recentemente foi tema de debate uma intervenção da deputada municipal de Lisboa do PPM, Aline Beuvink, em 2019, acerca das fomes que aconteceram na Ucrânia entre 1932 e 1933 do século passado. Nessa intervenção, que veio a terreiro no programa “O tabu” de Francisco Louçã, no seu “momento zen”, a deputada diz que, durante essas fomes, houve canibalismo, e que crianças teriam desaparecido por terem sido comidas pelas próprias famílias. Seria, até, por causa disso que teria nascido o mito de que os comunistas comiam criancinhas.

Por ter entendido que Francisco Louçã gozou com o Holodomor e menosprezou as atrocidades cometidas pelos regimes comunistas, a tribo lusa direitista caiu em cima dele.

É já antiga a disputa histórica sobre quem matou mais: o capitalismo, o comunismo, o nazismo, o colonialismo, o cristianismo ou o islamismo, numa patética “comparação de pilinhas” da mortandade. Há uns anos, até se publicaram os “Livros Negros”, um atrás do outro, do comunismo e do capitalismo, cada um reivindicando o respectivo regime como o mais nefasto da história.

Essas investigações, se forem feitas com rigor histórico, são muito úteis para percebermos as consequências negativas de qualquer construção social ou económica. Mas perdem todo o interesse se forem utilizadas apenas como armas de arremesso contra uma determinada ideologia. Logo à cabeça, porque fica muito difícil fazer-se uma avaliação de causa e efeito entre um determinado sistema económico e social complexo (como comunismo ou capitalismo) e as mortes ocorridas durante a vigência desses sistemas. E, também, porque há o risco de cegueira intelectual, tomando-se as mortes do outro sistema como uma verdade insofismável, e rejeitando qualquer morte como sendo causa directa do sistema que defendemos.

Infelizmente, foi muito isso que vimos nos textos de opinião da direita publicados a propósito desse “momento zen”, acusando Louçã de ser um branqueador do comunismo ou um negacionista do Holodomor. Acontece que Louçã não fez nenhuma negação do Holodomor, apenas criticou as pessoas que acreditam que os comunistas comem criancinhas ou justificam essa mitologia. É que usar este episódio histórico como prova insofismável de que o comunismo é diabólico, é o horror, é de uma indigência intelectual insuportável. Até o silogismo: Premissa 1. Houve uma fome na Ucrânia onde os ucranianos comeram crianças por desespero; Premissa 2. Estaline foi o responsável; Conclusão: “por isso se diz que os comunistas comem crianças ao pequeno-almoço”, falha todas as regras da lógica. Aliás, a respeito da história do comunismo, o que mais se vê é uma confusão entre o discutir a ideologia e a análise das suas tentativas de implementação.

Já aqui escrevi que o comunismo ainda não existiu. Apenas existiram sistemas político-económicos que, usando a palavra comunismo, criaram realidades, muitas vezes, opostas ao ideal comunista. Aquilo que falhou nos ditos países comunistas não foi a aplicação do comunismo. O que falhou foram os sistemas de planificação central da economia (que tendem a funcionar muito mal), assim como os regimes políticos de partido único, autoritários, que esmagaram muitas liberdades individuais.

Mais, o comunismo nem sequer precisa de ser marxista: a ideia comunista é mais antiga do que Marx (vejam-se os socialismos utópicos). Também aqui já falei de Agostinho da Silva e de como ele invoca os religiosos portugueses do século XIII que anteviam um tempo da gratuidade da vida em que, usando uma linguagem comunista, “cada um faz o que pode e recebe o que precisa”.

É, assim, imbecil achar-se que o comunismo leva, inevitavelmente, a fomes, a canibalismo, a polícias políticas, a ditaduras ou quejandas barbáries. Aliás, é muito interessante verificar como alguns países da Europa de Leste, que hoje são capitalistas, mantêm uma estrutura política pouco democrática, demonstrando que essas nações parecem, culturalmente, gostar do autoritarismo (quando eram monarquias, repúblicas socialistas ou agora, que são capitalistas), sendo a Rússia o paradigma máximo.

Para se ter uma conversa séria acerca destes temas é fundamental fazer uma distinção clara entre o que é um programa ideológico e o que são os aproveitamentos práticos dessas ideologias. A história das ideias está cheia de distorções daquilo que alguém, ou alguns, idealizaram e o que outros executaram.

O cristianismo como ideário exposto no Novo Testamento (que é muito mais antigo do que o capitalismo ou o comunismo), é uma pregação da bondade, do perdão, da fraternidade e da igualdade. Na prática, são milhões os mortos em nome de Deus, em nome de Cristo. Que culpa tem Cristo de seguidores que usaram as suas palavras para perpetrar o mal? Cristo nunca disse para queimar mulheres em fogueiras, nunca disse para violar crianças, nunca disse para se começarem guerras sangrentas (ditas santas), nem para criar uma Inquisição.

Mas alguns, ditos seguidores de Cristo (e até líderes de igrejas cristãs), especializaram-se nessas bestialidades. A culpa não é do Novo Testamento, nem do ideário cristão. A culpa é das aplicações abusivas, contranatura, desses ideais.

Com o comunismo passa-se, exactamente, o mesmo. Um ideal de busca da comunhão e da libertação da exploração dos seres humanos, uns sobre os outros, que foi transformado, na prática, em ditaduras militares absolutistas que cometeram todo o tipo de violências.

O comunismo, enquanto ideal, não tem culpa nenhuma disso, nem há nada no comunismo que obrigue a que a prática seja como foi. E as experiências que existiram não chegam como invalidação da teoria: primeiro, porque desrespeitaram a teoria; segundo, porque nem sequer foram assim tantas experiências, durante tanto tempo. O cristianismo, por exemplo, leva 2000 anos de experiências e ainda se continuam a cometer muitas atrocidades em seu nome e ainda não se conseguiu criar a “fraternidade entre humanos” prometida.

Igual raciocínio se pode fazer relativamente à Civilização. As concepções europeias de progresso foram espalhadas pelo mundo à lei da espada e da bala. Sob pretexto da civilização, dizimaram-se povos e culturas, escravizaram-se pessoas, destruíram-se patrimónios históricos e deu-se origem a inúmeras guerras.

Mais uma vez, a ideia de progresso e de civilização é boa. Nomeadamente, os ideais iluministas, utilitaristas e humanistas que emanaram da Europa têm mérito para serem globalizados. Só que não podem ser espalhados à força. E se, no passado, era a Europa, na sua vertente imperial e colonialista, que se encarregava de “espalhar o progresso”, o século XX marcou a transição desse poder para os Estados Unidos da América, que se intrometem em todo o lado, supostamente na defesa da liberdade e da democracia. Quantos têm morrido em nome disso?

Não podemos desacreditar as ideias por más concretizações. No caso do comunismo, uma crítica legítima é a que se faz à centralização estatal da economia. Mas, mesmo aí, é preciso ser cuidadoso. É que se a planificação central do século XX não resultou, foi por questões de gestão de informação, nomeadamente pela vertente tácita, contextual e subjectiva das preferências individuais, que tornam essa centralização pouco fiável. Mas nada impede que futuros sistemas de planificação central, baseados em inteligência artificial, não venham a ser mais eficazes do que os actuais sistemas de mercado (como também já aqui aludi).

Acima de tudo, tem que ficar claro que, para se discutirem ideias, não podemos recorrer a caricaturas. E justificar que se diga que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço porque houve uma fome nos anos 1930 na Ucrânia, na qual Estaline tem responsabilidades, é uma falácia argumentativa indefensável.

Quem quiser ser sério numa discussão sobre estes temas tem que se ater às ideias, não às suas concretizações deturpadas. Uma pessoa pode, do ponto de vista ideológico, ser cristã, comunista e defensora da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, tecer as mais duras críticas às igrejas cristãs, aos partidos e governos comunistas ou aos males que a imposição da civilização tem causado. Uma coisa não contraria a outra, bem pelo contrário. Se estivermos atentos e formos críticos quanto às más utilizações das ideias, mais seremos capazes de nos bater por transformações que façam uma aplicação justa e fiel dos ideais.

Um bom cristão será o primeiro a condenar a pedofilia no sacerdócio ou os negócios escuros na Santa Sé, assim como um bom comunista terá que ser o primeiro a denunciar o regime norte-coreano como um despotismo absolutista anticomunista, ou, ainda, um bom ocidental capitalista deverá insurgir-se contra a ingerência militar em países pobres (para controlar activos estratégicos) sob a capa da defesa da liberdade dos povos invadidos.

O lema deve ser: não invoques o nome de Cristo, do Comunismo ou da Civilização em vão.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.