Este mês a cidade de Lisboa foi o palco para mais uma edição da Web Summit. Este evento, altamente mediatizado, apresenta-se como sendo o fórum da inovação e do empreendedorismo, potenciador de oportunidades de negócio para os mais diversificados produtos e aplicações.
Devo dizer que não acompanhei muito de perto as múltiplas iniciativas promovidas ao longo dos vários dias, mas considero que, apesar do folclore e do foguetório, este tipo de eventos tem algum mérito que não convém desvalorizar. Para além do impacto imediato na economia da cidade e do país, a Web Summit pode ser um interessante catalisador de dinamização de alguns setores, ainda relativamente circunscritos, da nossa economia e do tecido empresarial. Contudo, esta está longe significar a galinha dos ovos de ouro que muitos apregoam, como se fora uma espécie de panaceia para o desenvolvimento das economias modernas.
Na verdade, o que me preocupa neste tipo de eventos não é tanto o desmesurado impacto mediático, mas sim a sua mitificação, ou melhor, as suas múltiplas mitificações. E é perante estas que convém lançar algumas questões para que não se cristalizem no espaço público enquanto ‘verdades’ invioláveis. Sendo assim deixo aqui algumas notas soltas em jeito de perguntas.
Desde logo, é importante questionar o significado de ‘empreendedor’ (o mito do ‘homo-empreendedor’), cuja expressão tem sido usada sistematicamente por parte da retórica empresarial e da gestão. À primeira vista, o empreendedor parece tratar-se de alguém que está constantemente a conceber ideias e a elaborar formas de as pôr em prática e de as aplicar. Este é intrinsecamente criativo e, talvez por isso, parece ser eternamente jovem. Pelo menos é essa a sua imagem pública recorrente. Curiosamente, dá a ideia que o empreendedor não envelhece, não ganha peso, não perde cabelo, pelo contrário, é por natureza irrequieto e está sempre a mover-se agilmente de um país para o outro.
A este propósito, estabeleceu-se uma construção social em torno desta figura que a associa a uma idade necessariamente jovem. Como se a idade um pouco mais avançada representasse, só por si, um antídoto ou um impedimento à inovação. Apetece perguntar se já não será possível a uma pessoa de 50 ou 60 anos ter ideias inovadoras que rompam com as rotinas e saberes instituídos? Parafraseando uma conhecida cantiga do Sérgio Godinho ser empreendedor assemelha-se assim uma espécie de elixir da eterna juventude dos tempos modernos: “Esse que quer que tudo mude / P’ra que tudo fique igual”.
Ironia à parte, enquanto assistia às imagens refrescantes transmitidas da Web Summit, não resisti a pensar com os meus botões sobre quantas daquelas pessoas da assistência teriam participado na primeira edição do evento em 2009? Ou, dito de outro modo, quantos de entre esses primeiros foram desistindo, perdendo a pedalada, ficado para trás, envelhecendo…? Sabemos que a taxa de mortalidade das designadas startups é muito elevada e que poucas conseguem sobreviver e consolidar-se. Contudo, seria interessante saber quantos dos designados empreendedores conseguiram resistir e continuar na crista da onda passados quase dez anos. E aqueles e aquelas ‘jovens’ que ficaram para trás, o que fazem agora? Estão desempregados? Ou encontram-se a trabalhar em áreas muito distintas e afastadas das iniciais?
Mas talvez o mito mais poderoso associado ao empreendedorismo é aquele que desconsidera a função e o papel do Estado e das políticas públicas quer como suporte fundamental para a criação de ambientes propícios e estáveis à inovação, quer enquanto sistema de proteção social capaz de enquadrar e socializar os riscos envolvidos nas atividades em causa. Como se para se ser empreendedor bastasse a objetivação eficaz de uma boa ideia e o convencimento de um grupo empresarial para investir na mesma.
Também neste caso é importante questionar: fará sentido falar-se de empreendedorismo em contextos de crescente risco de precarização social e laboral? Porque é que recorrentemente se descura a questão da proteção social em atividades que se caraterizam por um risco tão generalizado? De certa maneira, vai-se instituindo esta conceção perversa de que a proteção social não se coaduna com a natureza da atividade do empreendedor, o eternamente jovem.
Cada uma destas perguntas, entre muitas outras, daria para vários artigos e debates. E não é no âmbito do espaço desta coluna que teremos possibilidade de aprofundar a discussão. Cabe apenas alertar para a necessidade de desconstruir estes e outros mitos de maneira a que não se enraízem e naturalizem nas sociedades contemporâneas, independentemente dos diferentes contextos sociais, económicos e culturais em que são produzidos. Estas noções que se vão internalizando nas disposições individuais, nomeadamente nas populações mais jovens, acarretam um conjunto de pré-noções e de mal-entendidos que podem ser muito nefastos a médio e longo prazo.
Desconstruir cientificamente a aceção atual atribuída à noção de empreendedor e de empreendedorismo não é um mero exercício académico estimulante, trata-se de uma empreitada relevante que está longe de se esgotar em meros comentários de circunstância. É preciso empreender a sério nas ideias comuns sobre empreendedorismo e questionar os seus pressupostos, incluindo os que se apresentaram neste pequeno artigo.