Habituados que estamos à nossa “pequenez” custa-nos acreditar quando um “portuguesinho” alcança um grande feito internacional. “A seleção portuguesa de futebol teve uma estrelinha”, “Telma Monteiro beneficiou de uma escorregadela da adversária”, Nuno Lopes nem sabe como é que alcançou “o prémio de melhor ator no Festival Internacional de Cinema de Veneza”. Somos pródigos em encontrar argumentos que afastam o mérito dos que conquistam vitórias, arrecadam prémios e recebem distinções. Alguns defendem que é a humildade de um povo educado. Outros apontam o fado como castigo. Outros ainda assinalam que só o “desenrascanço” que nos é atribuído nos faz sair, por vezes, ganhadores. Para além disso, quando o feito é alcançado, tratamos logo de o subestimar: “Ah, também só fomos campeões europeus, o mundial é que era”, “Está bem está, mas a medalha da Telma não é de ouro”, “Com o devido respeito, o Festival Internacional de Cinema de Veneza não é a cerimónia dos Óscares de Hollywood”. Esta típica atitude provinciana não está a ser diferente com a eleição de António Guterres para o cargo de secretário-geral das Nações Unidas.
À boca cheia, o que saem são elogios, mas quando se viram as costas, impera o encolher de ombros e os suspiros. O facto de o ex-primeiro-ministro português ter passado 297 dias em “avaliação”, ter defrontado vários rivais, ter ultrapassado seis votações, ter tido 13 votos de encorajamento, dois neutros e nenhum veto, parece, agora, algo de concretização “fácil” e “expectável”, como se apetecesse dizer: “Não esperávamos de Guterres outra coisa”.
Quando se avança com a explicação para o tão fantasticamente sucedido, esquecem-se todas as horas de trabalho, preparação, dedicação e estudo que desde os tempos da escola têm marcado a vida de Guterres. Olvida-se o percurso, nem sempre fácil e nem sempre exitoso, quer em Portugal (enquanto, por exemplo, primeiro-ministro), quer na própria ONU (enquanto Alto Comissário para os Refugiados), e atiram-se bacocas injustiças: só os países menores se candidatam a este cargo; o secretário-geral da ONU pouco decide; os membros permanentes nem se interessam por esta eleição; a escolha de Guterres é fruto do trabalho da diplomacia portuguesa; etc.
Quanto a nós, apesar de não recorrermos ao pictórico ‘emoji’ do coração utilizado por Juncker para parabenizar Guterres (e esperando que o Presidente da Comissão Europeia não tenha nunca conversado com José António Saraiva, que já deve estar a compilar matéria para o Tomo II das “Saraivadas”), enchemos o peito de orgulho para lhe dirigir as palavras que o próprio utilizou: “humildade e gratidão”. Estamos gratos a Guterres pela lição de mérito e humildade que transmitiu a todos os portugueses. Mérito próprio, já que não foi o coletivo que respondeu às várias chamadas exemplarmente e em quatro línguas.
Não escrevo enquanto cidadã do mundo que vai beneficiar da sabedoria do ex-primeiro-ministro no mais importante cargo da diplomacia mundial, mas enquanto portuguesa descrente na grande parte dos políticos que forma hoje a nossa atualidade nacional, por Guterres me fazer acreditar que é possível.
Com o exemplo de Guterres, o discurso da cerimónia do 5 de outubro de Marcelo Rebelo de Sousa ganha ilustrações que, de positivas, dispensam legendas. É possível que políticos portugueses deixem os “casos” de lado. É possível que os políticos portugueses se orientem pela “frugalidade” e “humildade”. É possível que os políticos portugueses se consciencializem que o poder político “não é propriedade de ninguém, pessoa, família, classe, partido, grupo cívico, cultural ou económico”. É possível que os políticos portugueses façam uma reflexão política, ética e pessoal sobre os cargos que vão ocupar, evitando escolhas que belisquem o caminho até aí traçado. É possível que os políticos portugueses sejam “populares” a contornar as mais “kristalinas” manobras do Partido Popular Europeu. É, pois, possível que os políticos portugueses adquiram estas características: só não parece provável que consigam ficar por Portugal a exercer estes ideais, já que, entretanto, são “recrutados” pela cena mundial para os desempenhar em mais abrangentes e altas obras!