Niccoló di Bernardo dei Machiavelli, conhecido na nossa língua por Nicolau Maquiavel, é considerado o primeiro autor do pensamento estratégico no ciclo que a Renascença abriu ao mundo. O livro em causa tem um título conhecido, “A arte da Guerra”, o mesmo exacto título do famoso livro de Sun Tzu. Porém, é no livro “O Príncipe” que encontramos a contribuição mais conhecida e debatida de Maquiavel, o tal onde nasceu o adjectivo “maquiavélico”. Mas como é possível que as ideias iluminadas da Renascença, aplicadas à liderança e à virtude, tenham como corolário uma contribuição tão perversa?

A verdade é que poucos quererão ser conhecidos como maquiavélicos, mas, como vamos ver, afinal ser maquiavélico é o que as empresas devem praticar quando almejam um posicionamento estratégico com rentabilidade à vista, leia-se, lucro. Vejamos como.

Ler “O Príncipe” de Maquiavel começa por ser uma lição sobre a relação entre virtude e liderança. Para leitores mais distraídos, à primeira vista, a virtude de Maquiavel pode até parecer inofensiva. Mas então, o que terá dado origem ao adjectivo “maquiavélico”? É no estudo da aplicação detalhada do conceito de virtude que encontramos esta sublime contradição – bem como o seu valor incomensurável para os negócios – razão pela qual vale a pena estudar, debater e aplicar a virtude de Maquiavel.

Para além das lições sobre a arte de bem liderar liderança, a virtude de Maquiavel é importante para a rentabilização de qualquer proposta de valor ao serviço da estratégia de negócios. Aliás, podemos optar por uma forma mais crua de verbalizar essa importância, e dizer o seguinte: “Como manipular as emoções dos clientes para lhes ir ao bolso”. Mas afinal qual é a relação entre a virtude de Maquiavel, as emoções das pessoas e as fontes de receita dos negócios? Vamos aos detalhes.

Em “O Príncipe”, Maquiavel explica detalhadamente o que é a virtude nas seguintes dimensões: o líder tem de ser (i) amigável, (ii) generoso, (iii) piedoso, (iv) saber manter a sua palavra, (v) ser socialmente casto, (vi) convicto, e (vii) consequente nas suas decisões. Além disso, relativamente ao processo de decisão, o líder tem de ser (i) sério, (ii) corajoso, (iii) transparente e (iv) firme. É isto.

Maquiavel passa metade do livro a descrever como exercer a liderança com virtude, ou seja, como aplicar estes onze princípios, e a outra metade a dar exemplos, alguns deles do tempo do império romano, bem ao estilo da alta renascença, diga-se. Afinal, não é só nas correntes estéticas que encontramos o revivalismo da antiguidade clássica.

Aparentemente, todos estes princípios de liderança são virtuosos, positivos e muito longe da tradicional percepção do que é ser maquiavélico. Porém, o significado mais comum deste adjectivo está patente na célebre frase “os fins justificam os meios”. Assim, será que, para além da virtude, Maquiavel defende outras ideias, de alguma forma contraditórias com a liderança virtuosa e tão positiva que ele próprio define? Será que merece de facto a conotação negativa e indelével do adjectivo com o seu nome?

A liderança exerce-se através de um processo de comunicação entre as pessoas, através da emissão e recepção de informação, seja esta verbal ou não. Por isso, os elementos da virtude maquiavélica também têm duas faces: (i) de um lado temos o comportamento do líder (emissão), e do outro (ii) o que dessa comunicação é compreendido por quem o rodeia (a recepção, interpretando a emissão).

Ao ler “O Príncipe” com atenção, Maquiavel explica-nos como liderar para cair nas boas graças de todos. Assim, segundo o mestre, o líder virtuoso tem como objectivo primeiro exercer a sua influência nas mentes dos liderados. É assim que Maquiavel descreve com detalhe os elementos emocionais que levam as pessoas a querer confiar cegamente no seu líder e a dar como boas todas as características da sua virtude, mesmo que do ponto de vista absoluto o líder não se comporte exactamente da forma como é percebido. Mas o facto é que é percebido como tal, e a chave desta interpretação enviesada e útil está no querer confiar, ou seja, na atitude proactiva de quem está a ser liderado em querer seguir o seu líder em qualquer situação.

A virtude de Maquiavel define-se como uma mera percepção

O mundo nunca foi tão maquiavélico. Hoje estamos rodeados de exemplos de líderes para quem a demagogia já não é suficiente: a mentira descarada passou a fazer parte da sua verdade, ou da sua realidade, chamada de alternativa. E hoje já temos provas claras e abundantes em como as redes sociais podem ser uma arma particularmente eficaz em fazer as pessoas acreditar literalmente naquilo que o líder quiser. Isto não será verdade para todas as pessoas, mas seguramente para aquelas mais disponíveis à confiança cega, providenciando assim terreno fértil à manipulação maquiavélica. Mas então como propõe Maquiavel levar as pessoas a acreditar inquestionavelmente no seu líder?

Tudo passa pelas emoções da audiência. As emoções prescrevem vontades, e as vontades prescritas são o resultado das relações de poder. É, aliás, essa a genialidade de Maquiavel: o seu exercício de poder é sub-reptício, pois leva as pessoas a aceitar os pontos de vista do líder como se essas ideias fossem genuínas e partissem da sua própria vontade. Mas não são. As suas vontades são geradas artificialmente pelo líder, como resposta previsível às suas iniciativas. São quatro tipos de elementos de manipulação emocional que encontramos em “O Príncipe”.

O primeiro elemento é saber criar emoções na relação pessoal que façam as pessoas sentirem-se bem, e que é, por exemplo, a base do processo de sedução. São emoções que levam as pessoas a ambicionar mais momentos de felicidade e bem-estar, o que até pode ser viciante. Por exemplo, o humor tem sido, ao longo dos tempos, um dos melhores aliados deste primeiro elemento maquiavélico. Através do humor, seja pelas palavras, seja pela comunicação não verbal, o líder faz as pessoas rir para com isso ganhar ascendente emocional.

O segundo elemento da manipulação emocional maquiavélica é a utilização dos ambientes sociais na origem de emoções positivas e também potencialmente viciantes. É um elemento muito rico, que tem assumido múltiplas formas, e está hoje em franco crescimento através das abundantes inovações proporcionadas pelas redes sociais emergentes. Por exemplo, há pessoas que apreciam o palco proporcionado pela recompensa emocional das interacções em comunidade, o que tem sido, aliás, a forma mais eficaz de manipulação da opinião pública na última década.

Não resisto em referir aqui a classificação utilizada pela doutrina da Guerra da Informação relativamente aos participantes apanhados a partilhar desinformação nas redes sociais: os técnicos dos Serviços de Informações chamam-lhes “idiotas úteis”. Quando alguém partilha uma notícia, seja o seu conteúdo informação ou desinformação, está na expectativa de contribuir para as emoções positivas de todos quantos estiverem expostos a essa comunicação. Essa contribuição pode ter origem em emoções eventualmente mais altruístas, isto quando prevalece o bem que o emissor acredita estar a criar, assim como pode ser mais egoísta, quando o que conta é a apreciação que o emissor faz de si próprio relativamente a essa mesma partilha.

Em qualquer dos casos, o que conta são as emoções criadas no seio da audiência com objectivos maquiavélicos, ou seja, quando as emoções dessa audiência são criadas em benefício do emissor. Para além disso, a relação social também se pode estabelecer de forma mais equilibrada, quando um conjunto arbitrário de intervenientes partilha um mesmo palco, situação cada vez mais comum com os inusitados grupos de WhatsApp.

Independentemente das razões emocionais que levam as pessoas a subir ao palco das redes sociais, o efeito é sempre o mesmo: a comunicação num ambiente social é emocionalmente forte, e é isso que a torna tão eficaz como arma de manipulação.

Se dúvidas houvesse, exemplos tão proeminentes e maquiavélicos como o Qanon e o assalto ao capitólio no rescaldo da tomada de posse de Joe Biden como o 46º presidente dos EUA tornaram clara a força da manipulação emocional através das redes sociais. Afinal, até no seio dos valores da democracia e da liberdade de expressão se consegue levar as pessoas a acreditar na defesa desses mesmos valores através da prática de acções ignóbeis que professam exactamente o oposto.

O terceiro elemento é a conveniência, simplesmente porque a lei do menor esforço é universal e particularmente pronunciada no ser humano. O hábito é tão-só o resultado tangível desta lei inelutável, simplesmente porque é mais fácil para qualquer um de nós tomar decisões automáticas e confortáveis em função do que conhecemos, em vez de questionar e experimentar o desconhecido.

Foi Herbert Simon quem melhor explicou toda esta natureza humana através do seu princípio da racionalidade limitada, assim demonstrando a origem das nossas rotinas e heurísticas nos comportamentos e na tomada de decisão. Por exemplo, é o malfadado hábito que torna tão difícil reaprender a conduzir do lado errado da estrada quando temos de alugar um automóvel para visitar o Reino Unido (entre outros).

Clarificando: a conceptualização teórica do que é contornar uma rotunda do lado errado é potencialmente letal na escolha da faixa de rodagem certa à saída da mesma. Assim, a consequência da conveniência, ou do hábito, como exemplo mais estremado na mesma linha, é uma cristalização de comportamentos que permite ao líder antecipar o resultado dos acontecimentos e criar condições para que esses mesmos hábitos lhe sejam favoráveis. É o mesmo que viciar as pessoas naquilo que é bom para o líder, mas não obrigatoriamente bom para essas mesmas pessoas.

O último elemento da manipulação emocional maquiavélica é particularmente eficaz, e tem origem na ganância, que é apenas uma forma mais crua de dizer que toda a gente gosta de ganhar dinheiro. A ganância também permite antecipar comportamentos, pois as pessoas irão escolher preferencialmente a opção mais rentável ou lucrativa. É este elemento que explica, por exemplo, o sucesso das campanhas de fidelização com descontos personalizados e coupons.

Maquiavel utiliza todos estes quatro elementos na sua doutrina para conseguir interagir subliminarmente com a mente dos que rodeiam o líder. Portanto, é a utilização destes elementos emocionais maquiavélicos a manipular a percepção do que é a virtude que fomenta a ligação lucrativa aos clientes, tornando-os mais dispostos que nunca a remunerar a criação de valor dos nossos negócios, ou seja, a pagar mais. O resultado dessa ligação emocional está patente nos custos de mudança dos consumidores, os quais podem ser criados, geridos e maximizados.

É esse o truque: utilizar técnicas de manipulação emocional para criar um custo natural de mudança para a concorrência. Quanto maiores forem esses custos para os consumidores, mais podemos cobrar a cada um deles. Assim, quando as emoções positivas se fazem sentir nos nossos clientes, estabelecem-se estes custos de mudança para a concorrência medidos pela consequência emocional no corte da relação que iria deitar a perder todos os sentimentos  que passaram a fazer parte da sua expectativa, alguns deles viciantes. Além disso, como a relação envolve transacções, pois é isso que define um cliente, a utilização dos quatro elementos de manipulação emocional maquiavélica vai forçosamente criar custos de mudança que as empresas aproveitam para rentabilizar as suas operações, ou para maximizar o lucro.

Por outro lado, a manipulação emocional não se restringe aos clientes, mas a todas as entidades que possam estar sujeitas a manipulação emocional. Tanto podem ser simples consumidores, como colaboradores ou mesmo competidores. É essa a força da doutrina de Maquiavel, e é tão importante que continuamos a discuti-la mais de cinco séculos após ter sido escrita.

É, portanto, assim que se utiliza de forma maquiavélica “a manipulação das emoções dos clientes para lhes ir ao bolso”, e essa manipulação é a receita de Maquiavel concretizada pelos sete elementos da sua virtude quando praticada de acordo com os seus preceitos, ou seja, quando a virtude é uma construção da percepção. E é por tudo isto que, afinal, a virtude de Maquiavel é verdadeiramente maquiavélica.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.