Depois de várias notícias publicadas pelo New York Times acerca de uma reunião entre Donald Trump, Jr. e uma advogada com extensas ligações ao governo russo e, soube-se alguns dias depois, um hacker dos serviços de inteligência russos, durante a campanha presidencial americana, o filho do (por enquanto) Presidente dos Estados Unidos tornou públicos os emails que precederam a marcação da reunião.

Se procurava usá-los para se ilibar, o tiro saiu-lhe pela culatra: neles, fica claro que Trump, Jr. sabia bem que a reunião teria como propósito a partilha de informação “danosa” sobre Hillary Clinton e que essa partilha “fazia parte do apoio da Rússia e do seu governo ao senhor Trump”. “Se se trata do que diz”, respondeu Trump, Jr., “eu adoro”.

Depois de meses de dúvidas acerca das ligações de Trump a criminosos russos e ao Kremlin, e do eventual conluio com os esforços de Putin para interferir no processo eleitoral americano, o seu próprio filho, provavelmente sem querer (a inteligência não faz parte da longa lista de credores da família), confirmou que a candidatura de Trump se dispôs a colaborar com agentes do Kremlin, e que, a não ter sido passada informação sobre Clinton nessa reunião, não foi por qualquer escrúpulo seu, mas por a advogada afinal não a ter dado.

No entanto, os tarefeiros e apoiantes de Trump nos EUA agiram como se nada se tivesse passado: uns disseram que “não há qualquer prova” (apesar de Jr., ter deixado bem claro que sim), outros disseram apenas que “não há nada de ilegal” no que aconteceu e “toda a gente faz isto”, mas todos permaneceram incapazes de confrontar a realidade diante dos seus narizes. Como, aliás, aconteceu por cá, onde pelo Facebook, pelo Twitter e pelas caixas de comentários de blogues, vários membros daquilo a que por simplismo chamamos de “a direita”, embevecidos com o primeiro presidente laranja dos EUA, continuavam a defender que tudo não passa de uma invenção.

Não é nada que não se tenha visto antes: nos tempos do ex-primeiro-ministro suspeito de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais, José Sócrates – à medida que ficava cada vez mais claro que este usara a sua influência para obter uma licenciatura de forma irregular, que usara o banco detido pelo Estado para controlar um banco privado que não lhe fazia as vontades, e que abusara do seu poder político para levar um grupo económico “amigo” a comprar uma televisão que tinha a ousadia de investigar estas e outras manigâncias –, vários membros daquilo a que por simplismo chamamos de “a esquerda”, enamorados pelo “animal feroz”, recusavam-se a ver o que qualquer um podia já ver, tal como hoje muitos ainda se recusam apesar de serem cada vez mais claros os esquemas usados para os crimes pelos quais Sócrates aguarda acusação.

Não sendo nova, esta atitude mental é assustadora. Estas reacções gémeas da “esquerda” e da “direita” mostram como somos cada vez menos capazes de pensar criticamente sobre a realidade política, e somos os piores cegos – os que não querem ver – para a evidência que prejudique o nosso suposto “lado” (ninguém decente, de “esquerda” ou de “direita”, se pode sentir do mesmo lado de ilusionistas autoritários como Trump e Sócrates). E cada vez menos temos essa capacidade de analisar criticamente a realidade, cada vez menos somos capazes de avaliar o que está bem, o que está mal e quem poderá ou não fazer melhor.

Sem essa capacidade de pensar criticamente sobre os factos, não passamos de neandertais reunidos em claques que cantam sobre decretos-lei em vez de golos. Se todos formos cegos para os factos que deixam mal o respectivo “lado”, as nossas democracias não poderão viver de forma saudável. E se não formos cegos perante a evidência de que o somos, teremos de reconhecer que as nossas democracias estão gravemente doentes.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.