Daniel Kahneman, Prémio Nobel da Economia (2002) e psicólogo, revolucionou a forma como vemos os nossos processos de tomada de decisão e os seus trabalhos com Tversky desbravaram caminho para mais dois Nobel, os de Robert Shiller (2013) e de Richard Thaler (2017). O contributo da psicologia para a economia ficou mais visível e a suposta racionalidade das nossas decisões, de modelos de previsão e da economia em geral foram crescentemente questionados.

Todavia, a psicologia até pode estar a ser mais utilizada em alguns países, em termos de aplicação às políticas públicas, de modo a torná-las mais efectivas tendo em conta como as pessoas se comportam e não como “se deviam comportar”, mas isso não é ainda uma realidade prática em Portugal de uma forma suficientemente visível. A crise pandémica que agora vivemos trouxe os holofotes para a Psicologia e para os psicólogos, à semelhança do que já tinha acontecido em 2017 com a tragédia dos incêndios no centro país.

Esse episódio foi promotor de maior consciência do papel do psicólogo, particularmente em situações de crise, enquanto os meses que temos vivido com este coronavírus têm elevado para outro patamar a centralidade da Psicologia e dos psicólogos nas sociedades contemporâneas e começam mesmo a possibilitar que se olhe de forma mais transversal para o papel do psicólogo, valorizando a sua presença em diferentes contextos e ao longo de todo o ciclo de vida.

Se a imagem do psicólogo, como clínico e num contexto mais de saúde, ou até mesmo na educação, onde o número de psicólogos cresceu mais do que duplicando dos cerca de 700 há cinco anos para os agora perto de 1.700, noutras áreas o caminho está um pouco mais por fazer.

Desde de 2018 que me dirijo anualmente ao Sr. Presidente da República, em carta aberta, numa iniciativa articulada com a presidência, onde faço um ponto da situação da profissão e dos seus contributos para o país, traço as linhas do futuro próximo e dos desafios, para os quais por vezes peço o apoio do Sr. Presidente. Um dos aspectos referidos neste Setembro em audiência, foi a de o país não estar a chamar os psicólogos, aqueles que aplicam a ciência que estuda o comportamento e os processos mentais, para lidar com uma crise cujo controlo depende dos nossos comportamentos e da percepção de risco e a forma como se gere a comunicação em função desta. Para além disso, este ano, um dos alertas foi para o impacto psicológico desta crise, mas em especial para o que se avizinha e vai crescendo em consequência do agravamento da situação económica do país.

Se o país quer recuperar mais rapidamente desta crise e quer preparar as pessoas para os impactos que ainda temos pela frente, tornando-se mais resiliente, então necessita de cuidar e apoiar as pessoas no seu desenvolvimento e recuperação que lhes permita isso mesmo. Estas pessoas, numa pequena percentagem, desenvolverão perturbações psiquiátricas, mas a grande maioria dos que precisarão de ajuda, a grande maioria de nós – sim, de nós, pois todos somos potencialmente afectados – sofrerão problemas que não são uma perturbação. Contudo, isso não significa que não possamos necessitar de ajuda.

Hoje existe um canal com acesso rápido, fácil, 24 horas por dia e 7 dias por semana, que possibilita o aconselhamento psicológico a quem dele mais necessitar. O Serviço de Aconselhamento Psicológico (SAP) da Linha SNS24 é uma conquista histórica para os portugueses.

“Acesso”. Essa palavra quase mágica. De facto, um dos factores que agravam os impactos psicológicos e saúde mental dos portugueses é mesmo a falta de acesso a cuidados de saúde psicológica, começando na falta de resposta dos cuidados de saúde primários onde 250 psicólogos para todo o país, num rácio de 2,5 psicólogos por cada 100.000 habitantes é esmagador para quem mais precisa. E muitos dos 45.000 acompanhamentos telefónicos do SAP do SNS24 precisavam de mais do que uma única intervenção breve. Muitas pessoas precisavam de ser encaminhadas para os Cuidados de Saúde Primários para ter um acompanhamento um pouco mais prolongado.

Esta situação leva a que muitos portugueses cheguem a ter que esperar mais de 2 anos para uma consulta de Psicologia no seu centro de saúde. Enquanto isso, agrava-se o problema e podemos chegar à perturbação. Uma parte das vezes a resposta vem em comprimidos. Às suaves prestações e com juros, mas sem que a causa do problema, muitas das vezes seja sanada. Estas pessoas vão mantendo ou agravando a sua vida pessoal, familiar e profissional. Vão estando mais ausentes do seu local de trabalho ou mesmo quando estão presentes tornam-se ausentes através do seu baixo desempenho e produtividade.

Estas pessoas não são “calonas”. A estas pessoas não basta dizer-lhes para se animarem, por exemplo, da mesma forma como não basta dizer a alguém que está a ter um enfarte para se aguentar e ser forte. E isto… é quando não é o próprio local de trabalho o caldo de cultura para stresse, burnout e outros problemas psicológicos. Em 2019 custaram às empresas portuguesas mais de 3,2 mil milhões de euros, apenas em custos directos.

A falta de avaliação e de planos de prevenção custam muito dinheiro a Portugal e à sua economia – três pontes Vasco da Gama. Enquanto isso vamos varrendo para debaixo do tapete, ou colocando no próprio trabalhador a responsabilidade das suas vulnerabilidades actuais, mesmo que causadas por assédio moral, trabalho por turnos sem devidos equilíbrios ou mais do que tudo, por vezes, as lideranças tóxicas. A saúde no trabalho não pode ser só saúde física nem um “faz de conta” com umas actividades de outdoor ou umas meditações avulsas ou até com live coaching por gente (não psicólogos) que se torna perigosa para saúde por não ser competente para o que está a fazer.

A saúde no trabalho tem que incorporar a dimensão psicológica e as equipas desta área devem assim contar com a colaboração de psicólogos, como hoje já contam com médicos e enfermeiros. Mas este trabalho dos psicólogos não é um trabalho clínico, é um trabalho sobre a organização, as suas dinâmicas, as competências, a liderança e a cultura. As empresas ou as organizações no geral são feitas de pessoas, assim como a economia, não é de zeros e uns. São os comportamentos das pessoas, as suas competências, a sua motivação e tomadas de decisão que fazem o seu sucesso e competitividade.

Conjugadamente, muitos de nós defendem a necessidade de coesão social, a necessidade da redução de desigualdades e de como isso é aliás essencial para a prosperidade e para a paz. Conforme a Ordem dos Psicólogos Portugueses publicou num relatório recente, existe um círculo vicioso entre a pobreza e a problemas de saúde psicológica e mais enfaticamente com a doença mental. A pobreza cria problemas de saúde psicológica e estes são geradores de pobreza.

Alguns de vós lembrar-se-ão de estórias em que parece que os personagens são apanhados numa bola de neve de infortúnios, com decisões erradas em cascata que levam vulgarmente a muitas perdas patrimoniais e mais decisões erradas em consequência. A evidência científica aponta para uma redução da capacidade de resolução de problemas em virtude das carências materiais ao ponto de poder oscilar sazonalmente. Ou seja, uma comunidade cujo rendimento do seu trabalho é significativamente menor numa altura do ano, de forma cíclica, vê periodicamente afectado o seu desempenho intelectual sempre que o período de carência se instala e melhora quando os seus rendimentos voltam a subir.

Este tipo de dados deve servir de reflexão para futuras políticas económicas e sociais e para a redução do estigma. Aliás, este determinante social – a pobreza – concomitantemente com o acesso aos cuidados de saúde e a literacia, não só contribuem para o famoso “estigma” associado à doença mental, mas também para verdadeiramente agravar o estado da saúde mental em geral dos portugueses. Daí ser também necessário um trabalho de longo curso na promoção da literacia em saúde psicológica dos portugueses. Começando nos decisores políticos e nos líderes das organizações, até às crianças, ajudando-as desde cedo a reconhecerem e aceitarem o que sentem e a se exprimirem.

Esta crise pandémica colocou visível o que já existia e ampliou e continua a ampliar a sua dimensão. Mas os psicólogos, que o país forma abundantemente, já cá estavam tanto como faltavam onde a população mais carente deles mais precisa. Talvez nunca como agora a sensação de urgência para a resolução desta lacuna tenha sido tão presente, partilhada e tão visível.

O impacto da crise económica na saúde psicológica cresce com o desemprego e o desemprego será mais difícil de reduzir devido às necessidades não atendidas de cuidados psicológicos. Cerca de 30% dos desempregados são impactados. A tal coesão social constrói-se muito a partir daqui, do não deixar muitos portugueses para trás, apoiando o desenvolvimento das suas competências, ajudando-os no desenvolvimento de estratégias para poderem autonomamente lidar com os desafios que a vida lhes coloca, com menos sofrimento, mais bem-estar e contribuindo para o um melhor desenvolvimento sustentável do país. Inovar aqui é utilizar modelos ainda pouco usados até aqui, mas com evidência científica, e não só tecnologia, que é feita de e para pessoas.

No plano de recuperação e resiliência para o país recentemente apresentado, as pessoas e o seu desenvolvimento adquiriram mais atenção, mas precisam de ser centrais, articuladamente com uma estratégia transversal de prevenção e desenvolvimento.

Temos que abrir os olhos mesmo para vermos na escuridão, mas nem todos o conseguimos fazer sozinhos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.