Ao contrário de uma ideia generalizada de concentração territorial, muitos estados prolongam-se por diferentes regiões e geografias. A República Portuguesa é um desses casos incomuns de descontinuidade geográfica, reunindo sob território nacional uma parte continental e dois arquipélagos, portanto, Portugal, Açores e Madeira. Os arquipélagos portugueses localizam-se longe da sua costa continental, invisíveis a partir desta e longínquos o suficiente para o transporte aéreo ser o mais prático.

Neste sentido, a República Portuguesa é tricontinental, dado as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira se encontrarem, no caso dos Açores, no encontro das placas litosféricas da Eurásia, América e África, localizando-se as ilhas nas duas primeiras placas, no caso da Madeira, a placa tectónica correspondente é a africana. Esta sua abrangência torna-a, agora, mais sujeita a fenómenos globais como as alterações climáticas e as alterações do ecossistema marinho que são particularmente sentidas por todos nós, seja nas chuvas diluvianas, nos ventos ciclónicos com características de furacão ou nos fogos que destroem a nossa paisagem e parte das atividades humanas de subsistência.

Sendo um estado europeu, a República Portuguesa derrama-se por outras latitudes e longitudes que a tornam bastante particular a sua geografia e também a sua posição geoestratégica. Nesse sentido, temos um país que beneficiou da sua exposição ao Atlântico para construir um projeto de saída do território europeu, identificando, cartografando e experimentando novos caminhos que o levaram ao encontro de população até então desconhecidas dos Europeus pré modernos. Após o final tardio do Império Colonial Português, mantiveram-se os dois arquipélagos de povoamento, no formato político autonómico, pela unidade cultural e social que mantinham com a parte continental do território.

Alguns intelectuais têm refletido sobre esta tricontinentalidade lusa, mesmo sem aludirem a este aspeto. Como se reflete esta dispersão geográfica na construção de uma cultura comum? Qual o papel da diáspora portuguesa?

Um diálogo açoriano

Para responder a estas questões que me parecem tão profundas para a sociedade portuguesa, apoio-me em dois autores açorianos de nascença e luso-americanos de vivência. Ambos já vivem há mais anos nos Estados Unidos da América do que vieram em Portugal / Açores, ambos são professores universitários e intelectuais reconhecidos. Refiro-me a Diniz Borges e Onésimo Teotónio Almeida. Roubando parcialmente o título do livro a Onésimo Teotónio Almeida, refiro-me a Diálogos Lusitanos, recentemente publicado pela Quetzal, começo pela obra de Diniz Borges.

Diniz Borges é professor de literatura na Universidade do Estado da Califórnia e diretor do Instituto Português Além-Fronteiras (tradução literal, provavelmente inadequada aos olhos do autor, de Portuguese Beyond Borders Institute). Diniz Borges publicou recentemente o livro Dripping Words – Selected Poetry From Madalena Férin, numa edição da Letras Lavadas. Trata-se de uma tradução de poemas selecionados de Madalena Férin para inglês. Diniz Borges é parte dessa comunidade de portugueses que saiu ainda criança dos Açores que fala um português escorreito, que traduz e escreve para as segundas e terceiras gerações de luso-descendentes que, embora muitas vezes orgulhosos da sua ascendência, perderam o conhecimento linguístico.

A bela poesia de Madalena Férin, também pouco conhecida em Portugal, não é acessível ao público norte-americano e canadiano ou à audiência luso-descendente, daí a sua tradução e a visibilidade dada a uma poeta que não está na primeira linha dos interesses editoriais de tradução. Questionei-me sobre a razão de traduzir poesia e perguntei ao autor que respondeu “Desde muito cedo que sou um leitor apreciador de poesia.  É um género trabalhoso, mas gosto muito de traduzir poesia.  Acho importante que o mundo de língua inglesa, e particularmente os luso-descendentes nos EUA e no Canada, que são mais de 2 milhões tenham conhecimento da poesia dos Açores em tradução.  Há uma grande riqueza literária nas ilhas, e uma grande tradição poética.” Pensei que era uma excelente justificação, mas também percebi que eu, leitora residente nesse espaço que é a República Portuguesa, não conheço parte da literatura desta literatura insular.

Aqui volto a Onésimo Teotónio Almeida que, nos já citados “Diálogos Lusitanos”, aflora esta questão, quando refere a ausência da produção literária insular no cânone da literatura portuguesa, deixando por isso de fora uma parte dos escritores que produz fora do circuito centralizado. Assim, são absorvidos os que, por algum motivo, passam pela parte continental do país e aí desenvolvem parte da sua atividade. As reflexões do autor em torno da modernidade são feitas a partir de leituras e diálogos com autores portugueses que originam uma escrita ensaística e, em simultâneo intimista, pela permanente conversa com o leitor que pode abandonar o livro a qualquer momento.

Na conversa com o autor e perguntando com quem dialogava respondeu: “Toda a vida fui lendo os grandes ensaístas portugueses e com eles fui conversando. Nalguns casos tornei-me mesmo amigo pessoal (Vergílio Ferreira Natália Correia, José Saramago, José Enes, José Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena). Não conheci Pessoa mas tenho escrito muito sobre ele. Portanto, estes ensaios são uma continuação de conversas sobre temas que lhes interessavam muito e a mim continuam a interessar. Estavam todos empenhados na modernização de Portugal, isto é, na saída de um Portugal muito marcado pelo passado, pelo catolicismo do concílio de Trento e a Inquisição, na busca de um Portugal moderno assente nos valores da modernidade.

Alguns dos ensaios não são de conversas específicas com autores, mas com as pessoas que se preocupam com estes temas.”

E nessas conversas cabe o mundo. Cabem também todos os portugueses e luso-descendentes, esquecidos na sua relevância para um país mais rico e mais influente.

Da comunidade à diáspora

Diniz Borges refere que a escolha de Madalena Férin se deveu a uma poesia reveladora da identidade açoriana e que, em simultâneo, é cosmopolita pelos temas que traz e cito “a liberdade, a justiça, a emancipação da mulher, o amor, entre outros e todos com uma linguagem poética que contém uma amalgama de metáforas e de símbolos que são ilhéus e universais”.

Onésimo Teotónio Almeida constrói os seus ensaios em torno de valores filosóficos universais, cito “Os valores do estado moderno são fundamentalmente os da liberdade, justiça alargados ao maior número possível de cidadãos. Eles estão na base das ideias de democracia, de progresso, de educação universal, de tolerância das diferenças.” Trata-se então de uma universalidade edificada através desse olhar tricontinental, do “nós” que nos pode olhar como “outro” dada a distância.

Os autores reforçam a relevância de uma estratégia de aproximação às segundas e terceiras gerações e de valorização da cultura portuguesa junto destes países de acolhimento. Mas também uma reflexão no seio da sociedade portuguesa de como promover a sua cultura e reconectar-se com as comunidades que em muitos casos, se tornaram diásporas. Entre literatura e filosofia e ambos ancorados na pertença a três placas tectónicas que não tornam a cultura portuguesa melhor, mas, pelo menos, diferente, os autores oferecem aos leitores uma excelente oportunidade para reflexão.