Estamos em início de setembro e por isso prepara-se o regresso às escolas e universidades. A 1ª fase do concurso de acesso ao Ensino Superior colocou perto de 50 mil estudantes que em breve chegarão aos bancos das faculdades. Em termos de procura destacou-se a área das engenharias e as notas de acesso mais elevadas estão em cursos como Engenharia Aeroespacial, Matemática Aplicada à Economia e Gestão ou Inteligência Artificial e Ciência de Dados.
Esta evolução parece natural. Muitos dos estudantes com melhores notas e, por isso, total liberdade de escolha dos cursos, acabam por optar por áreas que os dotem de fortes competências técnicas e/ou que sejam áreas emergentes com grande potencial. Também em agosto, ficámos a saber que existirá uma nova disciplina obrigatória no ensino secundário em escolas com projetos-piloto de inovação pedagógica, intitulada “Literacia e Dados”, e que terá como conteúdo a formação para diversos tipos de literacia, de que são exemplos a literacia “financeira, comercial, laboral e participação democrática”. Ver-se-á quais serão os resultados desta nova formação mas, à partida, ela parece corresponder a uma necessidade real.
A esse propósito, eu, que este semestre participo na docência de uma disciplina de Hermenêutica na Faculdade onde trabalho, dei por mim a pensar num desafio que é provavelmente transversal a diversas áreas e níveis de ensino, e que raramente é tematizado enquanto tal: a dificuldade de interpretar.
Informação, conhecimento e interpretação
Mencionamos muitas vezes a preocupação com a desinformação, e a necessidade de construir bases sólidas para a formação de conhecimento. Insiste-se igualmente na necessidade de formação para o pensamento crítico e a argumentação, tendo-se tornado um lugar comum de que a formação universitária ajuda a dotar os estudantes destas competências. Mas raramente se chama a atenção para a importância da capacidade de se saber interpretar adequadamente, que é tão básica como as anteriores.
Estas distinções podem parecer uma minudência, mas não o são. Comecemos por um dos domínios privilegiados da interpretação, o texto. Muitos colegas que lecionam na Universidade há décadas reportarão a mudança no perfil da maioria dos estudantes; se, há décadas atrás, era expectável, em áreas como as Humanidades, que a maior parte dos estudantes lesse livros inteiros, sobretudo os de autores de referência, e quantos mais melhor, em anos mais recentes parecia ser mais difícil conseguir inculcar esses hábitos de leitura, à medida que a preferência foi recaindo em textos mais curtos.
Isto para além de ser impossível ignorar a prevalência da mediação tecnológica e que passa não só pelo uso do ChatGPT e quejandos para se escrever ensaios e trabalhos académicos, como também de apps (Blinkist e outras) para se obter resumos que dispensem a leitura das obras.
Assim, não é de admirar que se vá notando uma tendência geral de dificuldade de interpretação de texto, e mesmo, em contextos quotidianos (não académicos) ou até profissionais, de interpretação de informação. Se tudo aparece descontextualizado e de forma hiperacelerada, se o estímulo apela a uma resposta mais rápida do que a própria sombra, não é estranho que nos enganemos.
A interpretação é, portanto, uma atividade quotidiana, que não se resume à interpretação de texto. Ela implica uma sensibilidade ao meio, ao contexto; está presente quando avaliamos qualquer situação social e a adequação do nosso comportamento à mesma, tanto como na mais refinada questão teórica.
Mas se esta dificuldade existe e não está, talvez, completamente identificada, isso significa que existe uma lacuna a colmatar no nosso sistema de ensino. É preciso encontrar melhores estratégias para ensinar a interpretar. Yves Citton, professor de Literatura em Paris 8, insiste neste ponto.
Em “L’avenir des Humanités: économie de la connaissance ou cultures de l’interprétation”, mostra que aquilo de que precisamos não é só de informação fragmentada e conhecimento (científico e técnico) alegadamente neutro; para o autor francês é necessário promover “culturas de interpretação” que formem sujeitos criativos, e acredita que as Humanidades são o domínio próprio para o fazer.
Citton argumenta que, para o fazer, seria necessário, entre outras coisas: promover práticas interativas de co-construção do conhecimento em vez de simplesmente transmitir conteúdos, promovendo a interpretação criativa; formar mais para a interpretação em sentido geral e menos consoante um afunilamento do conhecimento especializado; complementar a formação em argumentação lógica com questões de narratividade e estilo; promover uma interação (ainda que tensional) entre as disciplinas humanísticas e científicas (pp. 121-127).
Atenção fragmentada, interpretação enviesada
Algumas das causas da dificuldade de interpretação estão bem identificadas. A dinâmica digital desempenha nelas um papel importante. Sabe-se como o modelo de monetização dos “cliques” e a lógica aditiva inerente não só às redes sociais como à competição constante pela nossa atenção on-line, com ênfase nas constantes notificações recebidas 24 horas por dia em qualquer smartphone, são fonte de fragmentação da nossa atenção e dificultam o exercício de uma reflexão ponderada.
Acresce que, num mundo altamente polarizado, tendemos a reagir epidermicamente. Um indicador disso é a tendência de, aparentemente, muitas pessoas não lerem notícias inteiras, apenas os títulos e, ainda assim, partilharem esses conteúdos nas redes sociais de uma forma que não é contextualizada e, a maior parte das vezes nem sequer é compreendida.
Outro é a aparente incapacidade, por parte de tantos outros, de se compreender a ironia e, por isso, de se reagir com indignação por excesso de literalidade. Assim, e juntando-se às habituais heurísticas cognitivas que muitas vezes nos induzem em erro (leia-se “Pensar, Depressa e Devagar” de Kahneman), temos também uma atitude de hiper-sensibilidade que faz muitas pessoas ‘disparar’ antes (ou em vez) de inquirir.
Voltar ao básico
Antes que este texto pareça demasiado pessimista ou nostálgico, é preciso dizer que há sinais que a situação pode melhorar. Parte do problema parece ser que ler em formato digital parece ser menos propício a uma compreensão profunda do que fazê-lo em papel.
Ora, alguns estudos parecem indicar que a Geração Z não só tem hábitos de leitura regular como tende a preferir livros em papel, havendo até um ressurgimento da tendência de se frequentar bibliotecas. Ou seja, parece haver indícios do início de um movimento tão contraintuitivo quanto necessário, o de voltar ao básico: recuperar a componente material de uma leitura atenta e com tempo, bem como o encontro e a aprendizagem em comum.
É fácil perceber que muitas destas dinâmicas transcendem o sistema de ensino. Estes indicadores de inflexão nos hábitos dos mais jovens são um sinal de esperança; mas conviria que a educação também despertasse para a importância da arte de interpretar.