O mais provável é este atentado levar Donald Trump de volta à Casa Branca. Com a maior das ironias, o ex-Presidente que mais destratou a democracia norte-americana e suas instituições, é, doravante, parte da defesa da democracia. Ele que faltou à tomada de posse de Joe Biden, depois de perder a reeleição em 2021, o que não sucedia desde o século XIX. Ele que ficou associado a uma escabrosa invasão do Capitólio, inédita na história dos Estados Unidos. Ele que foi alvo, no exercício do seu mandato, de um par de processos de impeachment, metade de todos os que ocorreram na história do país.

Ainda assim, malgré tout, com este atentado, Trump passa para o lado que conta como património da democracia a defender. Líderes mundiais de todos os quadrantes tomaram posição. Emmanuel Macron a falar de uma tragédia para as nossas democracias, Lula da Silva e António Guterres a condenar inequivocamente um atentado inaceitável. E, com eles, Ursula von der Leyen, Xi Jinping, Órban, Meloni, Zelensky, Netanyahu, Olaf Scholz e o recém-eleito Keir Starmer. Sem esquecer o próprio Joe Biden, que não se importou nada em ser decente com quem não foi decente com ele.

Mas não é apenas Trump ter sido vítima de um atentado, em que uma bala rasante fez uma tangente à sua orelha e que nos suspende. É também a reacção de vitalidade e sem medo, de quem não se encolheu e mostrou o perfil dos presidentes que, na história da democracia americana, não se submeteram à ameaça de morte.

Ao mostrar um punho fechado, Trump mostrou determinação e força. E as comparações com Biden tornam-se inevitáveis, quando este se mostra cada vez menos presente, a enganar-se quando não está a ler o que não sabemos se escreveu, a prestar-se a confusões de bradar aos céus, como numa cimeira recente em que confundiu os nomes de Putin e Zelensky, ou numa entrevista em que tomou o seu adversário Trump pela vice-presidente Kamala Harris, entrevista em que – vá lá saber-se porquê – decide sussurrar quando responde a uma pergunta.

O populista Trump representa perigos, mas que, apesar da sua enormidade, mesmo considerando séculos de história da democracia norte-americana, podemos assumir que foram testados. As instituições prevaleceram, Trump resignou-se quando foi derrotado e se agora volta a candidatar-se fá-lo segundo as regras.

Biden tem representado outros perigos, que devem não ser subestimados. Não é apenas a sua aparente debilidade crescente. É o paradoxo dessa frágil figura ser hoje o rosto por detrás de uma potência que encarniça a cena internacional. Não é Trump, mas Biden o presidente norte-americano em exercício quando duas guerras se perpetuam agonizantes.

Da Palestina, além da notícia diária de mais mortes, chega-nos a notícia de que as notícias podem estar muitíssimo erradas. O genocídio pode ser da ordem das 180 mil vítimas mortais, diz a “Lancet”, prestigiada revista médica. É Israel, mas só os Estados Unidos poderiam ter mão. Pelo contrário, dão a mão, com armas, ao conflito. E há a guerra da Ucrânia, que tem que ver com a soberania de um povo, mas também com a influência territorial da NATO, crescente e cada vez menos por interposta parte.

Entre o populista e o figurante, tudo é péssimo, cada vez pior, mas talvez entre o péssimo e o ainda pior, Biden represente hoje mais perigos para o mundo. A conversa de Trump é sobretudo para consumo doméstico, fazer a América grande outra vez, muita performatividade, mas nem por isso vontade de guerras, a NATO a décima prioridade ou perto disso.

Trump imagina-se o maior entre os grandes líderes e não se importa de ter Putin como um deles e de conduzir uma política externa errática, mesmo aventureira. Já a administração Biden, na sombra de um poder apagado, vai repondo e desdobrando, sem complacências, como um mecanismo, os alinhamentos que mais predispõem a ordem mundial ao conflito.

Era tempo de as forças progressistas dentro do Partido Democrata encontrarem rosto que se constituísse como melhor opção que Biden, alternativa à sua administração e que se apresentasse a votos para dizer não ao populismo outra vez.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.