Quem vir os esboços do masterplan que a seguradora Fidelidade submeteu à apreciação da Câmara Municipal de Lisboa no final de julho para o desenvolvimento urbanístico da área de 27 hectares da antiga Feira Popular, em Entrecampos, no centro de Lisboa, da autoria de Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura – ambos vencedores do Prémio Pritzker, o designado “Nobel da Arquitetura”, criado em 1979 pela Fundação Hyatt para distinguir as melhores obras arquitetónicas que se distinguem pela solidez, beleza e funcionalidade –, entenderá, no rasgo da arquitetura e no conceito urbanístico que lhe está subjacente, que representam uma evolução face ao complexo edificado no Parque das Nações, também um dos mais modernos da capital portuguesa, urbanizado na sequência da reabilitação dos terrenos ribeirinhos que receberam a “Expo’98”.
Do ponto de vista arquitetónico, a construção nos lotes de terreno que fazem parte da designada “Operação Integrada de Entrecampos” – arrematados pela Fidelidade em hasta pública, no final de 2018, pelo montante de 273,9 milhões de euros –, desenvolverá um dos projetos urbanísticos europeus mais avançados da atualidade, representando a malha urbana que, em Lisboa, mais se aproximará de uma “cidade do futuro”. Este trabalho contou igualmente com a participação da arquiteta Ana Cottinelli Telmo Monteiro da Costa.
Tal como fora inicialmente apresentado, o projeto da “Operação Integrada de Entrecampos”, previa a construção de 700 apartamentos de habitação com renda acessível, 279 em regime de venda livre, apoiados por infraestruturas sociais como creches, um jardim de infância, uma Unidade de Cuidados Continuados, um centro de dia e um lar, e ainda áreas culturais, entre as quais uma galeria de arte e um espaço de preservação da memória do Teatro Vasco Santana, além dos 2,5 hectares dedicados a jardins e espaços verdes.
Assim se transformará esta zona central de Lisboa onde durante 42 anos (de 1961 a 2003) funcionou a Feira Popular. Esta área contará igualmente com edifícios de promoção privada destinados a escritórios e a comércio, dois grandes parques de estacionamento e um centro de serviços de referência internacional.
Admitindo que esta área lisboeta se enquadra no conceito abstrato de “Cidade do Futuro”, deve ter-se em conta que o mesmo vai muito além das infraestruturas urbanísticas e dos esboços de arquitetura. Cruza-se também com a informação, com as redes de comunicação de última geração – que já contarão com o contributo da quinta geração das comunicações móveis, o designado 5G – e com todas as soluções tecnológicas que vão surgir por esta via na internet sem fios e nos smartphones, aumentando a interconetividade permanente dos imóveis (habitações, escritórios, espaços comerciais, parques de estacionamento, serviços básicos, escolas e universidades), com os veículos (privados, públicos, partilhados, e com a generalidade dos modos de transporte urbanos).
Cidades do Futuro dependem de plataformas digitais
Este espaço urbano dependerá da capacidade das plataformas que gerem grandes fluxos de informação, imprescindíveis para tudo, desde a gestão do tráfego urbano à utilização das trotinetes elétricas, passando pela reserva de táxis, pelas potencialidades da condução autónoma e dos veículos que circulam sozinhos, sem condutor, até às soluções futuristas de mobilidade sustentável, como por exemplo os táxis aéreos elétricos, ou a generalização das habitações inteligentes, geridas remotamente através de soluções de domótica (onde se inclui a segurança anti-intrusão, o controlo da temperatura ambiente e da luminosidade, ou a gestão da energia limpa produzida pelo próprio imóvel).
Todos estes exemplos podem parecer caprichos de uma sociedade onde abunda o dinheiro. Contudo, na edição de quarta-feira, 19 de agosto, do diário francês “Le Monde” a manchete foi precisamente o papel da mobilidade sustentável e da ferrovia no relançamento da atividade económica nesta crise da pandemia de Covid-19 – um plano que será anunciado pelo primeiro-ministro francês no próximo dia 25 de agosto.
Além de anunciar a agenda governamental francesa, esta manchete mostra bem a importância do modo de transporte sustentável, elétrico, no desenvolvimento da economia, onde se contam as ligações da Alta Velocidade ferroviária que vão substituir muitos dos voos regionais que asseguravam ligações entre cidades (atualmente, um imperativo ambiental), as ligações noturnas feitas por comboios elétricos, o papel ambiental dos elétricos urbanos, a substituição gradual dos transportes rodoviários urbanos por pequenos comboios de nova geração, elétricos e autónomos (os designados shuttles), embora subsistam dúvidas sobre a rentabilidade de muitos destes projetos (o exemplo da Câmara de Oeiras mostra que a rentabilidade destes shuttles urbanos não é fácil de alcançar), todos eles enquadrados no âmbito das “Cidades do Futuro”.
A rentabilidade duvidosa é questionada apesar dos atuais programas de dinamização económica contra os efeitos negativos da Covid-19 disponibilizarem “envelopes financeiros” com montantes muito elevados. Refere, a propósito, o “Le Monde”, também a 19 de agosto, que o economista francês Yves Crozet considera que a companhia ferroviária francesa SNCF – que está a perder milhões de euros com a pandemia da Covid-19 –, ela própria “precisa de um plano de resgate” para evitar o pior.
Regressando a Lisboa e ao projeto de Entrecampos – que fará a nova urbanização dos terrenos da Feira Popular –, torna-se evidente que toda esta área é servida pelas redes do Metropolitano (fica ao lado da estação de Entrecampos e relativamente perto da estação de Roma), pelas ligações ferroviárias (localiza-se mesmo ao lado da estação de comboio de Entrecampos, com ligações urbanas, regionais e nacionais), dispõe de postos de carregamento para veículos elétricos, tem paragens de autocarros, praças de táxis e ciclovias.
Especialistas em mobilidade referem que dificilmente se consegue replicar na generalidade da cidade de Lisboa um nível tão elevado de intermodalidade e de disponibilidade de soluções de mobilidade. No mesmo sentido, o enquadramento infraestrutural deste conceito de “Cidade do Futuro” não é facilmente replicável em todas as cidades do país. Como seria, por exemplo, a Tavira de Álvaro de Campos – heterónimo algarvio de Fernando Pessoa – se lhe fosse introduzido este tipo de infraestruturas? Seria sustentável?
No conceito das “Cidades do Futuro”, a mobilidade sustentável assume um papel fulcral, sendo uma mobilidade digital e elétrica, gerida através de plataformas digitais, não poluente, conectada pela internet, multimodal e interativa. Muito antes da questão de saber se as cidades têm dinheiro para construir prédios inteligentes, será decisivo confirmar o rumo estratégico das principais cidades do país para saber se vão entrar definitivamente numa era digital. Será esse o caminho que as cidades portuguesas vão seguir a curto prazo?
“Sim, é esse o nosso caminho. E é a isso que temos vindo a assistir pelo mundo fora. Há cinco anos seria impensável ver o que vemos em muitas cidades que aderiram às bike sharing, ou ao car sharing, e creio que ninguém pensava que toda a sociedade seguisse esta tendência. A digitalização é um fator essencial para isto”. Quem o diz é Luís Barroso, presidente da MOBI.E desde julho de 2019 – a empresa que é o instrumento do Estado português para a mobilidade sustentável e que assegura a gestão dos fluxos energéticos e financeiros da mobilidade elétrica, funcionando como entidade gestora da Rede de Mobilidade Elétrica (EGME).
Luís Barroso admite ao JE que “vamos deixar de investir nas chamadas tecnologias tradicionais porque iremos passar a investir naquilo que é o futuro e o futuro é de facto a mobilidade inteligente e sustentável, com a oportunidade que isso traz para novos negócios e para acrescentar valor à nossa economia”. “Por exemplo” – refere – “nós assistimos durante os meses de abril e maio a uma queda vertiginosa na venda de veículos a combustão, mas no caso das vendas de Veículos Elétricos (VE), estas mantiveram um padrão de crescimento satisfatório”, diz.
“Cada vez mais as marcas automóveis estão a investir nos VE, lançando soluções de maior autonomia, eliminando assim um dos grandes handicaps da mobilidade elétrica. Já há uma marca que aparece com ensaios para mais de mil quilómetros de autonomia. Poucos veículos a combustão têm capacidades semelhantes”, comenta o presidente da MOBI.E.
“A mobilidade elétrica neste momento está a ser a aposta nos mais variados setores, no Estado, nos privados, nas marcas. Inclusivamente, não nos podemos esquecer que ao nível dos postos de carregamento temos duas empresas portuguesas que estão a dar cartas na tecnologia dos postos de carregamento, a Efacec e a Magnum Cap. São empresas portuguesas que estão a prover os seus postos e com criação de valor”, refere Luís Barroso. “A mobilidade elétrica deixa de ser uma prestação de serviços tout court e passa a aportar valor à economia através destas indústrias”, adianta.
“Vivemos num contexto económico global, no qual o pilar da sustentabilidade tem uma relevância ímpar através da descarbonização, a qual passa pela aposta política a nível mundial na mobilidade elétrica. O Estado português vai continuar a apostar na MOBI.E. No âmbito do Plano de Estabilidade Económica e Social, o Governo aprovou para a MOBI.E, em junho passado, um novo pacote de investimentos, superior a três milhões de euros que passa não só pela instalação de novos postos – agora ultrarrápidos – e pela criação de parques urbanos de carregamento, mas também pelo desenvolvimento de uma nova plataforma que permita gerir com maior eficiência um sistema que irá contar com um crescente número de utilizadores e de agentes de mercado”, detalha Luís Barroso.
Investimento ascende a 10 milhões de euros desde 2016
“Com o apoio financeiro do POSEUR e do Fundo Ambiental, temos conseguido assegurar a concretização da rede piloto, o funcionamento da rede MOBI.E e a sua utilização gratuita durante a fase de instalação. Desde 2016, o investimento público foi superior a 10 milhões de euros, tendo-se criado uma infraestrutura piloto de carregamento de baterias de VE constituída por 39 postos de carregamento rápido e mais de 650 postos de carregamento normal, que conseguiu uma poupança nas emissões de CO2 na atmosfera de mais de 14 mil toneladas”, refere o responsável pela MOBI.E.
“Foram anos de transição do setor da mobilidade elétrica muito exigentes, nos quais a MOBI.E teve de assegurar um conjunto alargado de funções, mas que, mesmo assim, com o esforço e empenho dos profissionais, nunca desistiu e permitiu à empresa, não só concretizar a rede-piloto, como desempenhar o papel enquanto EGME, credibilizando o nosso modelo junto dos diversos agentes de mercado, como o demonstram os 18 Comercializadores de Energia para a Mobilidade Elétrica (CEME), e os 58 Operadores de Pontos de Carregamento (OPC) que permitem a um número cada vez maior de Utilizadores de Veículos Elétricos (UVE) confiarem na rede da MOBI.E – atualmente, há mais de 9.000 utilizadores em Portugal”, diz Luís Barroso.
“Ao mesmo tempo foi possível trabalhar na modernização do sistema com a revisão do Regulamento da Mobilidade Elétrica (RME) que a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), após consulta pública, veio publicar no final do ano passado, bem como aumentar as funcionalidades do sistema da MOBI.E, procurando dar resposta à crescente exigência quer dos agentes de mercado, quer dos utilizadores, como o roaming nacional e internacional – ou seja, a utilização de cartões portugueses de carregamento em postos de outros países europeus e a utilização de cartões estrangeiros europeus no carregamento em postos portugueses –, bem como o denominado pagamento ad hoc dos carregamentos, os quais deverão passar a ser disponibilizados durante o último trimestre deste ano”, revela o responsável pela MOBI.E.
Note-se que a MOBI.E utiliza uma plataforma que já tem uma década para gerir e monitorizar os fluxos de informação de toda a rede, pelo que já está um pouco ‘debilitada’. “Vamos investir já neste ano, também no âmbito do programa de estabilização económico e social, numa nova plataforma para termos maior capacidade e conseguirmos dar uma maior fiabilidade aos utilizadores da rede. Isso é um investimento que deverá ser executado durante o próximo ano e com isso passaremos a ter uma plataforma robusta, pelo que o funcionamento da rede passará a ser muito mais fiável e com vantagens óbvias para os agentes de mercado e para os utilizadores”, refere ainda Luís Barroso.
“A nova plataforma da MOBI.E corresponderá a um investimento que rondará um milhão de euros”, diz o presidente da empresa. “Neste momento temos um pacote de investimentos com 12 postos de carregamento ultrarrápidos, mais os 10 parques de carregamentos em cidades – a que nós chamamos hubs –, e isto será um pacote de cerca de quatro milhões de euros de investimento para ser realizado até ao final do próximo ano”, remata Luís Barroso. Eis a base digital que suportará as cidades sustentáveis em Portugal – e que já é muito mais que apenas um sonho sobre as ruas do futuro.
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