Na madrugada do dia 9 para 10, sacrifiquei horas de sono para ver a cerimónia dos prémios da Academia de Hollywood. Todos os anos faço questão de dizer que “os Oscars são uma treta”, mas a verdade é que ligo sempre à coisa, pela simples se bem que irracional razão de que gosto que os filmes de que gostei sejam reconhecidos.

Este ano, fiquei especialmente satisfeito com a vitória de “Parasite”, realizado pelo coreano Bong Joon-ho. E o facto de ter sido premiado em detrimento de filmes banais como “1917” ou “Jojo Rabbit” e mediocridades atrozes como “Joker” foi particularmente apropriado, pois ao contrário do que a presença destes últimos na lista de nomeações podia indicar, 2019 foi um ano repleto de excelentes filmes.

Embora pessoalmente me tenham dito pouco, filmes como “Uncut Gems”, “Ash is Purest White” ou “The Souvenir” são inegavelmente bons, e repletos de detalhes que me fizeram achá-los merecedores de atenção. Documentários como o fabuloso “Appollo 11”, o indescritível “Rolling Thunder Revue” ou o oscarizado “American Factory” mostraram a enorme vitalidade de um género que passa demasiado despercebido.

Filmes mais ‘ligeiros’ como “Booksmart” (com uma rapariguinha para quem ando a prever prémios e aclamação desde que a vi na série “Justified”, Kaitlyn Dever) ou “Knives Out” (com Ana de Armas, que toda a gente passará a conhecer com o próximo Bond), ou até mesmo a comédia “Long Shot” (com Charlize Theron no seu melhor), mostraram que é possível fazer entretenimento sem abdicar da inteligência ou sem se limitar a anúncios a brinquedos feitos para justificarem o próximo anúncio para brinquedos. E mais do que isso, o ano passado teve uma série de filmes que serão lembrados e falados nos anos que hão-de vir.

Houve “Hustlers”, uma espécie de “Goodfellas” com strippers e um filme com uma excelente noção de ritmo (as lições scorsesianas foram todas bem aprendidas). Houve “The Farewell”, de Lulu Wang, um comovente (e bem-humorado) produto da A24 falado quase exclusivamente em mandarim e extremamente bem filmado. Houve “Marriage Story”, do muito cá de casa Noah Baumbach (“Frances Ha” continua a ser o seu melhor filme) com Adam Driver a mostrar que é o melhor actor da sua geração. Houve “A Hidden Life”, de Terrence Malick, visualmente deslumbrante e segundo o próprio realizador uma espécie de ‘resposta’ a “Silence” de Scorsese (outro grande filme).

Houve “Ad Astra”, do excelente James Gray, um ‘Apocalypse Now no espaço’ que não teve o reconhecimento que merecia. E houve “Atlantique”, um filme franco-senegalês demasiado estranho para descrever mas que qualquer pessoa com Netflix poderá espreitar.

Também no Netflix está “The Irishman”, um grande filme em qualidade que os filisteus acharam demasiado grande em duração, e que é o “Once Upon a Time in America” de Martin Scorsese, o que quer dizer que é “Once Upon a Time in America” se “Once Upon a Time in America” fosse um cruzamento de “Mean Streets” com “Silence”.

E claro, 2019 teve “Parasite”, um filme que toda a gente viu como ‘anticapitalista’ ou ‘anti-ricos’ (Clara Ferreira Alves, numa crítica especialmente obtusa, diz que o que torna o filme popular é o “desejo não consumado de violência da classe baixa sobre a alta”, não percebendo que a violência surge no filme como um destino trágico, não como uma recomendação) mas que (para além de uma prova de como Bong é extraordinário na composição visual dos seus filmes) é mais sobre a falta de mobilidade social, o efeito de ter ou não ter dinheiro sobre o comportamento das pessoas, e juntamente com muitos dos melhores exemplos do excelente cinema sul-coreano, uma alegoria sobre os traumas históricos do país.

Se “The Handmaiden” (do extraordinário Park Chan-wook) era (pelo menos em parte) sobre o trauma da ocupação japonesa, ou “The Host” (do próprio Bong) é sobre o trauma da presença americana na península, “Parasite” (como “Burning”, de Lee Chang-dong) é, entre muitas outras coisas, sobre a herança da natureza corrupta do sistema económico e político sul-coreano e os seus efeitos na sociedade, e o trauma da ameaça permanente de conflito nuclear com os vizinhos do Norte (veja-se a personagem que vive isolada do mundo e que idolatra uma figura que vê como exemplar. Veja-se como a mulher dessa personagem imita uma propagandista norte-coreana. Veja-se como essa família e a família central do filme se encaram como uma ameaça fatal, e como esse medo os motiva ao longo do filme).

Mas por muito que tenha gostado destes dois últimos filmes, e de honestamente os considerar obras-primas, os filmes que mais tempo me deixaram a pensar neles depois de os ver foram “Midsommar” (na sua versão de 170 minutos), “Little Women” e “Once Upon a Time… In Hollywood”.

“Midsommar”, de Ari Aster, é menos um filme de terror do que um pesadelo, não tanto assustador como inquietante, que para além do virtuosismo visual, usa e alimenta a nossa tendência natural de identificação com um protagonista para acabar a fazer-nos sentir desconfortáveis com essa identificação.

“Little Women”, de Greta Gerwig, é brilhante, e é brilhante por causa de Gerwig. Do extraordinário sentido de ritmo da montagem ou de movimento da câmara à alteração da cronologia linear do livro em que se baseia ou das adaptações anteriores, tornando a do filme não-linear, passando pelos saltos de uma velocidade normal para slow-motion e de novo para uma velocidade normal, pelas sequências de cross-cutting, pelo truque de se começar a ouvir uma conversa ou um monólogo numa cena, cortar-se para outra mas continuarmos a ouvir o que vinha da cena anterior, ou pelo truque de se começar a ouvir numa cena o diálogo da seguinte.

Gerwig manipula a estrutura do filme de todas as maneiras possíveis e imaginárias de forma a tornar o que nas mãos erradas poderia ser um dramalhão insuportável (veja-se a conhecida versão de 1994) num filme que consegue ser simultaneamente emotivo e enérgico, alegre e triste, nostálgico e optimista, e acima de tudo – meço bem o que digo – uma obra de génio.

Já “Once o Upon a Time… In Hollywood” é o melhor filme que Quentin Tarantino já fez (e a sequência ao som de “California Dreamin’” a coisa mais bonita que qualquer filme dele alguma vez teve), uma carta de amor nostálgica a uma Los Angeles que já não existe e um retrato de como a nostalgia é uma distorção daquilo de que somos nostálgicos, bem como um filme esperançoso acerca de como as nossas esperanças são abundantemente esmagadas.

No entanto, um ano com uma qualidade cinematográfica como a de 2019 talvez seja já coisa do passado. Num artigo publicado no “New York Times”, Scorsese lamentou o facto de as salas de cinema serem dominadas por filmes de super-heróis, que “são sequelas de nome mas remakes em espírito”, filmes todos iguais feitos para outros fins que não o de fazer filmes. Com cada vez menos salas a exibirem filmes, e cada vez mais dessas salas a pertencerem às gigantescas empresas que produzem quase exclusivamente esses filmes de super-heróis, Scorsese teme que haja cada vez menos financiamento para filmes como aqueles que marcaram o ano passado.

Tarantino, por sua vez, disse recentemente que 2019 foi palco de “uma guerra pelo cinema”: “os produtos comerciais detidos pelos grandes conglomerados” nunca “tiveram um ano melhor”. “Mas, ao mesmo tempo”, acrescentou, “não tiveram”. Filmes como “os que foram nomeados” acabaram por “sair” e “exigiram ser vistos”, e “se resumirmos o ano”, este foi marcado pela “sobrevivência” desses filmes.

Ao assistir aos Oscars e ao pensar sobre os filmes de 2019, só consegui temer que Scorsese tenha razão, e desejar que Tarantino esteja correcto.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.