Uma candidata à câmara da Amadora (Suzana Garcia, apoiada pelo PSD/CDS) apresentar-se a eleições a defender a “erradicação da Cova da Moura”, usar esta expressão “erradicação”, nem sequer entre aspas, é reflexo e exemplo da deterioração da linguagem que suspende as bases mais elementares de convívio que tornam a democracia uma realidade vivida e não apenas uma formalidade que se cumpre.

Se usamos, com sentido, o substantivo “erradicação” e o verbo “erradicar” é para definir uma atitude para com o que nos mata e faz mal. Erradicamos a peste, a miséria, a fome, que queremos ver arrancadas pela raiz, sem remissão, total e definitivamente removidas, eliminadas. Mas esta é uma atitude que só se aceita, verbalizada e praticada, diante do mal. Se deslocado o uso da palavra “erradicar”, se lançada a sua significação sobre a existência do bairro da Cova da Moura e da comunidade que o habita, então, o que se exprime é uma violência crua que deve ser tomada por obscena. Porque a moralidade mais elementar deve dizer que não se erradicam bairros, não se erradicam comunidades, não se erradicam as pessoas que delas fazem parte.

Conscientemente ou não, este deslocamento do uso da palavra incita a uma atitude de violência inerentemente desproporcionada, desrespeitosa e discriminatória, portanto, radicalmente maliciosa, essa sim a dever ser, pertinentemente, erradicada.

E a seriedade destas razões não pode deixar de reverberar o escândalo da morte violenta de Odair Moniz, pai de três filhos, baleado à queima-roupa ainda há um ano, e que reverbera outra morte violenta, de Ângelo Semedo, baleado pelas costas duas décadas antes, acontecimento que é hoje uma memória estruturante da consciência viva da Cova da Moura, bairro com uma história de resistência e afirmação que já faz parte do património cultural da Amadora, na verdade do próprio país.

A comunidade que habita a Cova da Moura tem uma invejável consciência da sua história, das palavras e dos actos que a ameaçaram no passado e que a ameaçam hoje, da dignidade e singularidade que a move. Bem o atesta o testemunho de Jakilson Pereira, dirigente do Moinho da Juventude, associação cultural da Cova da Moura.

Mas, não se respeita nada disso, quando se fala de requalificar um bairro sob a premissa do realojamento desta comunidade, ou seja, da sua expulsão. Num vídeo de campanha, vemos a referida candidata à autarquia da Amadora a conduzir uma espécie de caterpillar e a dizer coisas como “Esta situação na Cova da Moura já dura há tempo de mais. Alguém tem de se chegar à frente. Não tenho medo de nada nem de ninguém. Estou aqui para arrasar com o clandestino e requalificar esta zona toda. Custe o que custar.” E termina a sua intervenção descendo do veículo de obras e a dizer em inglês “I’ll be back!” Não é difícil sentir uma ameaça simbolizada, aliás muito pouco velada. Bem como a intenção de tomar aquele território para empreendimentos imobiliários. Ao mesmo tempo, no post escrito que acompanha o vídeo lê-se, num uso muito pouco à altura do que diz, que “a nossa cidade merece ter dignidade.”

Esta decadência da linguagem política não é caso pontual, está a alastrar-se, banalizando-se, até na Assembleia da República, aliás de forma muito acentuada no último par de anos. Exprime uma vontade de exercício incondicionado de poder sobre outros, que não tem legitimidade, mas que é uma realidade cada vez mais presente em discursos políticos cada vez mais intolerantes e desejosos de exprimir a sua intolerância. E que depressa chega ao espaço público, à rua, à fila da caixa de supermercado, ao transporte público e passa ao acto, geralmente, com intimidações que não raro vitimam os que estão na posição mais frágil.

Esse é um ponto suplementar que merece atenção neste caminho que a linguagem política está a levar. Uma espécie de política de facto consumado do abastardamento da linguagem política procura, verbalizando, legitimar retroactivamente o que antes de ter sido dito, antes de quebrado o tabu, aberta a caixa de Pandora, não era aceitável.

Nada disto tem que ver, pois, com liberdade de expressão, ou algum tipo de elitismo avesso ao sentir do povo, mas com as bases elementares do convívio democrático.

Urge discutir muito aberta e politicamente a linguagem política que se dissemina como um incêndio, não recear criticar, com toda a clareza necessária, a violência inerente à linguagem política do populismo e a permissividade à violência de que esta linguagem deteriorada é cavalo de Troia, em suma, não deixar entrar este veneno. Seja na Assembleia da República, nos órgãos de comunicação, nas redes sociais, ou simplesmente quando saímos de casa. De outro modo, a nossa capacidade de envolvimento e escuta democráticos adoece perigosamente.

A acção da tirania é antecipada na linguagem que a projecta como uma espécie de realidade já consumada e que assim anuncia a sua vinda. Evitá-la não é restaurar tabus, mas regenerar o espaço comum para a possibilidade da compreensão mútua.