Nada como citar Camões para descrever o que se passou com o éxame de português do 12.º ano, realizado no dia 19 deste mês, que teve no centro da polémica outro nome maior da poesia nacional: Fernando Pessoa.
Em primeiro lugar, o poema de Pessoa, no heterónimo de Alberto Caeiro, divergia da versão original. Na realidade, originalmente, o nono verso do poema XXXVI de “O Guardador de Rebanhos” diz: “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira”. Ora, o exame recorre a um final ligeiramente diferente do verso, ao referir: “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa”.
Erro meu? De acordo com o Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), não. A edição da obra que foi citada no exame “diverge de outras edições”, mas “o seu teor não impede nem condiciona a resposta ao item 2 do grupo I”: o aluno deve apenas responder à pergunta com base no poema citado, não com base em qualquer outro. Problema menor, rapidamente esquecido face à polémica que de imediato viria a rebentar.
De facto, nos dias que se seguiram, vieram a público suspeitas de que uma fuga de informação permitira a alguns alunos conhecer aspetos nucleares do exame, num claro desrespeito pelo caráter reservado e confidencial da prova. Numa gravação que circulou dias antes do exame no WhatsApp, aparece uma voz feminina que refere: “Ó malta, falei com uma amiga minha cuja explicadora é presidente do sindicato de professores, uma comuna, e diz que ela precisa mesmo, mesmo, mesmo só de estudar Alberto Caeiro e contos e poesia do século XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive. E pediu para ela treinar também uma composição sobre a importância da memória…”.
Má fortuna? Certamente. A sindicalista confiou no recato da explicanda, a quem quis orientar no sentido correto, esperando que esta não se “bufasse” junto das suas colegas. A explicanda, incapaz de guardar o valioso segredo para si, decidiu transmiti-lo a uma sua amiga, dizendo-lhe, certamente, para não o passar a mais ninguém. A amiga, adepta das novas tecnologias e das redes sociais, ignorou o pedido da transmissora e, qual Madre Teresa, espalhou a mensagem para quem dela quisesse se aproveitar.
Amor ardente? Sim, o de Miguel Bagorro, professor da Escola Secundária Luísa de Gusmão, em Lisboa, que, tendo tido conhecimento da gravação no sábado, antevéspera do exame, através de um aluno a quem dava explicações de português, e confirmado, com estupefação, na segunda-feira, que a mesma era rigorosa, denunciou a situação ao Ministério da Educação, por amor à verdade, à justiça e à equidade, e por considerar que “não passa pela cabeça de ninguém que seja possível, por coincidência, acertar nas três coisas”.
Ficou com a “batata quente”, como quase sempre, a Inspeção-geral de Educação e Ciência (IGEC), com orientações para concluir com urgência as investigações, e o caso foi igualmente encaminhado para o Ministério Público, para efeitos de averiguação disciplinar e criminal.
Conhecendo, como conheço, a IGEC e os que lá trabalham, o caso está bem entregue, sendo expectável uma decisão sem condicionamentos e que aplique a lei. Caso as suspeitas de fraude sejam confirmadas, não parece restar outra opção que não a de anular a prova, ainda que tal decisão afete gravemente os 74.067 alunos que a realizaram, a esmagadora maioria sem beneficiar de qualquer tipo de informação privilegiada. É que, não sendo possível apurar quem teve efetivamente conhecimento prévio da matéria que viria a ser objeto da prova, torna-se impossível garantir uma avaliação justa e equitativa, tanto mais que neste complexo tabuleiro de xadrez se joga o acesso ao ensino superior, muitas vezes decidido por décimas.
A não optar pela anulação do exame, o Ministério da Educação arrisca-se a ter de enfrentar processos judiciais por parte de estudantes que se vierem a sentir lesados, ou seja, basicamente, todos aqueles que se vejam ultrapassados na sua opção de entrada no ensino superior.
Assim, sem prejuízo das sanções penais e disciplinares que podem vir a ser impostas à “sindicalista benemérita”, dificilmente, a confirmar-se a veracidade da denúncia, poderá o ministro da Educação deixar de anular o exame, apesar dos prejuízos que daí decorrerão para milhares de alunos e suas famílias e do atraso que tal poderá acarretar no processo de candidatura dos estudantes ao ensino superior.
Se percebemos que a matéria é demasiado complexa para uma decisão precipitada, não temos dúvidas de que uma não decisão acarretará custos muito superiores para todos os envolvidos e porá em causa um dos pilares fundamentais do sistema de ensino nacional.