O resultado da repetição das eleições em Espanha parece ter confirmado aquilo que já há algum tempo se vinha assistindo: uma maior divisão da sociedade espanhola, que se consubstancia numa maior fragmentação do Congresso dos Deputados, mas também do Senado, para os quais entraram representantes de forças políticas nunca antes eleitas.

Umas eleições onde, apesar de se parecer adensar a nuvem da ingovernabilidade e da falta de consenso, que faria prever uma manutenção do statu quo alcançado com as eleições de abril, tem claramente vencedores e vencidos.

De facto, o VOX afigura-se como grande vencedor da jornada eleitoral: mais do que duplicou o número de deputados e, no espaço de menos de um ano, passou de uma força praticamente não representada junto das instituições democráticas, para terceira força política de Espanha. Também o PP aparece no lado dos vitoriosos, ao recuperar quase 600.000 votos, ao ver crescer em 33% a sua representação no Congresso dos Deputados e por distar 5% face ao segundo partido mais votado à direita, o que lhe pode conferir, querendo, um estatuto de líder da direita em Espanha (recorde-se que era ténue a anterior diferença, de apenas 1%, face ao então segundo partido mais votado, o Ciudadanos).

No lado oposto encontramos os “castigados” da noite. O PSOE, que apesar de ter vencido as eleições e de não ver confirmada uma queda acentuada, como algumas sondagens previam, perdeu três deputados, num cenário eleitoral em que este partido se pretendia ver reforçado e, com isso, trazer mais estabilidade governativa. Por fim, o Ciudadanos, que teve uma hecatombe raramente vista e que nem nos piores cenários se podia imaginar.

Pagaram ambos, cada um na sua medida, pelo bloqueio anteriormente vivido. As demais formações políticas tiveram, também, resultados dignos de análise, com o Unidas Podemos (“UP”)a perder sete deputados e o Más País, de Iñigo Errejón, a entrar para o Congresso.

Surge, pois, uma vez mais, a questão da governabilidade e dos acordos políticos, num Estado que não está habituado a ter coligações de governo e no qual, até há relativamente pouco tempo, imperava o bipartidarismo.

Se, em face dos resultados, numa primeira análise se poderia dizer que Espanha estaria condenada a repetir eleições, a verdade é que aquilo que conhecemos hoje – um acordo entre o PSOE e o Unidas Podemos – parece levar Espanha para uma coligação sem precedentes, assumindo Pablo Iglesias um papel essencial, o de vice-presidente do Governo.

Não deixa de ser curiosa esta solução, se tivermos em consideração que há menos de seis meses o PSOE afirmava que o obstáculo, o empecilho, a uma coligação com o UP era o seu líder Pablo (“el escollo es el líder, Pablo Iglesias”) e que Pedro Sánchez justificava a sua recusa de uma coligação com aquele partido ao dizer que seria presidente do Governo, mas que “seria um presidente do Governo que não dormiria bem pela noite”. Nem ele, nem “95% dos cidadãos que também não se sentiriam tranquilos”, continuava. Tudo isto faz supor que a repetição das eleições teria tido alguma previsão, que saiu gorada, de ver estes dois partidos reforçados nas urnas, em novembro.

Será igualmente relevante notar que a soma dos deputados eleitos pelo PSOE e pelo UP dá 155, o que fica aquém dos 176 que são necessários para formação de uma maioria absoluta no Congresso dos Deputados e que permitirá a investidura do novo Governo. Ficará, portanto, o novo Governo dependente da generosidade de outras forças políticas. E se o Más País estará disposto a votar ao lado do PSOE e do UP, não é tão líquido que formações como a ERC (Esquerra Republicana de Catalunya) e o PNV (Euzko Alderdi Jeltzalea-Partido Nacionalista Vasco) – essenciais à investidura – se predisponham a votar lado a lado.

E importará, ao mesmo tempo, realçar que no Senado – que assume uma especial relevância legislativa, nomeadamente, na aprovação do orçamento de Estado – os socialistas deixaram de ter maioria absoluta e que o UP não tem um único senador.

Não haveria uma alternativa?

Analisando os discursos dos líderes dos dois maiores partidos espanhóis na noite eleitoral, aqui e ali – não esquecendo que são grandes as suas diferenças, o que foi toda a campanha e o que prometeram aos respetivos eleitorados – parecia que se abria margem para uma grande coligação PSOE/PP. Senão, veja-se:

Atentemos primeiro ao discurso de Pablo Casado, por ter falado antes de Pedro Sánchez. Casado, que, tivesse crescido ainda mais em número de deputados e tivesse o PSOE perdido escaños na mesma dimensão, exigiria a saída imediata de Sánchez, limitou-se a dizer que o líder socialista era o grande derrotado da noite e que estava na altura de os socialistas começarem a pensar no futuro. Mas continuou dizendo que Espanha não pode esperar mais e asseverando-se como “a força moderada, a força tranquila (…) o partido que vai continuar a defender a unidade nacional”. Isto, quase que como apelando ao mesmo sentimento de moderação e à defesa da unidade nacional, por parte do PSOE.

Apesar de ter referido já no final do seu discurso que os seus programas e as propostas para os espanhóis eram incompatíveis com as propostas que faz Pedro Sánches, antes disso já tinha o próprio Casado sido comedido, afirmando que se ia ver o que proporia Pedro Sánchez e que depois o PP exerceria a sua responsabilidade porque Espanha não poderia continuar bloqueada por mais tempo. Fazia crer, assim, que apenas faria depender o seu apoio ao Governo das propostas concretas de Sánchez.

E, até quando se referiu ao facto de o PP ser a alternativa ao governo das esquerdas, poderia ser interpretado como se estando a oferecer para que o PSOE se recentrasse e passasse a depender do PP e não das formações mais à esquerda no espectro político. Mais ainda, num cenário no qual o UP e as formações à sua esquerda não lhe garantiam uma maioria estável. E Casado, quando falou, já sabia disso…

Pedro Sánchez, por sua vez, começou por referir que o PSOE ganhara as eleições, mas que o seu plano não era continuar a ganhar eleições e que o seu projeto político é formar um governo estável e fazer política em benefício da maioria dos espanhóis e espanholas. E disse-o: não fecharia a porta a ninguém, com exceção dos “partidos que se autoexcluem da convivência democrática e semeiam o discurso do ódio e da antidemocracia”.

Ora, se esta frase foi entendida pela maior parte dos analistas políticos como uma exclusão do VOX das negociações (coisa que por sinal seria de esperar, embora não que me pareça que semeiem o ódio ou legitimem um discurso antidemocrático), entendo que suportaria o entendimento segundo o qual se estaria também a excluir do diálogo para formar governo os partidos independentistas, que não condenam as manifestações violentas que ultimamente assolam a Catalunha.

E, neste sentido, seria o PSOE a abrir a porta a um pacto com o PP. A este título, recorde-se o que foi dito por Cayetana Álarez de Toledo, cabeça de lista do PP por Barcelona, segundo a qual, num cenário pós-eleições, o PP estaria disposto a alcançar grandes acordos com o PSOE, condicionando os mesmos ao facto de este se comprometer a aplicar uma nova política na Catalunha, fazendo cessar qualquer relação com o independentismo.

Por outro lado, Pedro Sánchez referiu ainda que “ou sim ou sim” haveria um governo progressista em Espanha. Não me parece, contudo, que pudesse ser entendido como uma exclusão do conservador PP das negociações. Poderia, antes, significar uma chamada do PP ao centro. E há, ainda, uma grande diferença face ao discurso de 28 de abril. Nessa altura, quando Sánchez falava, as bases que assistiam gritavam “com Rivera não, com Rivera não”. A isto não se assistiu na última noite eleitoral. Nem em relação a Rivera, nem em relação a Casado.

Perante umas eleições em que os partidos nacionalistas e regionalistas elegeram, no seu conjunto, o maior número de deputados de que há registo, face ao colapso do Ciudadanos e em função do crescimento de uma direita mais rigorosa que teve como uma das principais bandeiras a união de Espanha e a ilegalização de partidos independentistas, impunha-se que os dois principais partidos soubesse chegar a acordos e encontrar consensos para a governação de Espanha.

Importaria perceber se o PP estaria disposto a correr o risco de deixar de ser líder da direita e da oposição em Espanha, deixando essa responsabilidade a cargo do VOX e se o PSOE estaria, de facto, disposto a governar com o apoio de um PP mais próximo do centro, uma vez que este espaço foi deixado vazio pelo Ciudadanos.

Uma deriva à esquerda sem que se tivesse tentado um compromisso entre estes dois gigantes espanhóis, trará, parece-me, maior crispação a uma sociedade já de si muito dividida, além de não assegurar uma estabilidade governativa sólida.