Fui acompanhando, ao longo das últimas semanas, o julgamento do “impeachment” de Donald Trump no Senado americano. E de tudo o que por lá se passou, um dos aspectos mais interessantes foi a presença, na equipa de defesa do primeiro presidente laranja dos EUA, do conhecido advogado e professor de Direito Alan Dershowitz.

Dershowitz lançou-se no caminho da fama com a pornografia. Não como participante, claro, mas como advogado de Harry Reems, a estrela de “Deep Throat” (“Garganta Funda”), acusado e condenado por “distribuição de obscenidade”. No entanto, a celebridade chegaria verdadeiramente com o caso von Bulow, e o filme baseado no relato de Dershowitz, “Reversal of Fortune” (“Reveses da Fortuna”).

Martha “Sunny” von Bulow, uma rica herdeira americana divorciada do príncipe Alfred de Auersperg e agora casada com Claus von Bulow, fora encontrada no chão da mansão de Newport, inconsciente. Segundo os médicos, sofrera graves lesões cerebrais devido a hipoglicemia, e ficou num coma permanente.

Os filhos do casamento com o príncipe suspeitaram que Claus tivesse tentado matá-la: um ano antes, Sunny já havia sofrido um incidente semelhante e outro em Abril de 1980. Em Julho de 1981, o estado de Rhode Island acusou Claus de tentativa de homicídio, alegando que este injectara Sunny com uma overdose de insulina, e o julgamento terminou com a sua condenação.

Von Bulow recorreu e contratou Dershowitz, que pôs em causa a credibilidade das testemunhas da acusação e a validade das provas usadas contra o seu cliente. Sunny teria sido vítima, não de uma injeção de insulina, mas da ingestão de drogas e álcool, e o seu efeito sobre a sua já frágil saúde. Em 1985, von Bulow foi absolvido (membros da equipa de Dershowitz e os filhos de Sunny continuaram convencidos de sua culpa), e Dershowitz tornou-se uma celebridade.

Foi sem surpresa, portanto, que OJ Simpson o contratou para sua defesa no julgamento pelo homicídio de Nicole Brown e Ron Goldman. Após um julgamento extraordinariamente mediático, Simpson foi absolvido, apesar da quantidade de provas sustentando o argumento da acusação, e da opinião generalizada de que ele era culpado (uma percepção que só cresceu com o passar dos anos).

Décadas depois, Dershowitz argumentaria que “nós” (o “Dream Team”) “não vencemos”, “eles” (acusação) “perderam”, sugerindo que as provas eram mais fortes do que o argumento da equipa de Simpson a favor da sua inocência, mas os “erros” cometidos pela acusação permitiram que ele se safasse.

No seu livro de 1996 sobre o julgamento, Dershowitz já havia escrito que, se O.J. tivesse sido considerado culpado e a defesa recorresse (a razão pela qual ele fora contratado), seria pouco provável que Simpson “prevalecesse“.

Lendo o livro e a afirmação de Dershowitz, de que “a absolvição unânime do júri neste caso promoverá a verdade a longo prazo, enviando uma poderosa mensagem de que o modo habitual de fazer as coisas não será tolerado”, fica-se com a impressão de que Dershowitz também acredita que Simpson era culpado, mas como o princípio judicial de que ninguém deverá ser condenado se houver alguma dúvida razoável sobre a sua culpa, OJ foi justamente absolvido por causa dos dúbios procedimentos da investigação da polícia judicial e a identificação racial de membros do júri do julgamento.

Em 2008, Dershowitz foi contratado pelo agora falecido milionário Jeffrey Epstein, que segundo as autoridades estaria envolvido numa rede de tráfico sexual que abusava de várias menores de idade.

Dershowitz e o restante dos advogados de Epstein conseguiram chegar a um acordo com a acusação, que, ao forçar Epstein a declarar-se culpado de contratar uma menor para prostituição e de solicitação, permitiu que ele passasse apenas 18 meses (dos quais só cumpriu 13) na prisão (muito menos do que teria de passar se tivesse sido considerado culpado das acusações originais).

No início deste ano, depois de uma série de artigos no “Miami Herald” detalharem o seu envolvimento num esquema de tráfico sexual, Epstein foi novamente preso por acusações semelhantes às de que fora originalmente acusado, e acabou por morrer na prisão enquanto aguardava julgamento.

O historial de clientes de Dershowitz certamente contribuiu para formar no público a percepção generalizada que existe sobre a sua figura. A forma como foi descrito num recente perfil publicado na “New Yorker” ilustra como a sociedade o vê: ele é o “advogado do diabo”, “um demónio do mal” que “se especializou em defender pessoas que fazem coisas abjectas”, “assumindo posições” que, em última análise, não são apenas controversas, mas quase indefensáveis.”

Para o público, “contratar Dershowitz” é sinónimo de “culpado que se consegue safar”. E isso parece ser exatamente o motivo pelo qual o presidente Trump escolheu tê-lo na sua equipa de defesa. Trump não quer ser considerado “inocente”. Quer ser considerado como alguém que poderia matar uma pessoa na Quinta Avenida sem que isso lhe custasse o apoio dos seus eleitores. Quer que as pessoas saibam que ele é culpado, mas que é suficientemente poderoso para estar acima da lei que se aplica ao comum dos mortais.

A contratação de Dershowitz é uma janela para o carácter de Trump, para a noção que tem de si próprio e para a sua necessidade de projetar uma imagem de um homem poderoso e intocável. As suas descaradas exibições de abuso de poder, o seu desprezo arrogante pela lei e o seu orgulho flagrante em violá-la, antes e durante a sua presidência, não são apenas uma manifestação do seu logo percurso de vigarista e criminoso.

São instrumentos através dos quais Trump projeta poder, apresentando-se como alguém tão descarado na sua criminalidade que sofre as consequências desses actos, tão seguro da sua impunidade que pode até sugerir ou mesmo gabar-se da sua culpa, sabendo que nunca será chamado a pagar o seu preço.

A contratação de Dershowitz, e tê-lo na televisão a defender Trump, são apenas outras maneiras de sinalizar isso, outra maneira de fazer um photoshop da cabeça do presidente no corpo de Silvester Stallone-como-Rocky. Por causa do que Dershowitz passou a significar para a opinião pública, por causa do que a sua “persona” representa, e pelo simples facto de estar na sua equipa de defesa, Dershowitz dá a Trump o que ele quer, e permite-nos ver como Trump quer que nós o vejamos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.