Numa época em que as leis se sucedem a um ritmo frenético, há um velho decreto do governo, do período em que Salazar ocupava a pasta das Finanças, que continua em plena vigência. Alheado do decurso do tempo, viu entrar em vigor duas constituições, sobreviveu a revoluções e contrarrevoluções e, sobretudo, resistiu à constante fúria revisionista do legislador pátrio.

De pedra e cal, hoje como há 89 anos, assim continua a sua marcha o Decreto n.º 16 563, publicado no Diário do Governo de 3 de maio de 1929, em plena ditadura militar que haveria de desembocar no Estado Novo. Quase nove décadas de ininterruptos serviços, invariavelmente a fixar nos mesmos 70 anos o limite de idade dos “funcionários civis dos Ministérios e serviços dependentes”, atirando de forma metódica para a reforma compulsiva inúmeros servidores públicos que queriam continuar a trabalhar.

Seguramente muitos médicos, professores, diplomatas, magistrados, mas também chefes de repartição, diretores de serviços, técnicos superiores, técnicos especialistas, assistentes administrativos, motoristas e jardineiros. Porque esta nossa função pública não é para velhos, mal apagaram as 70 velas (outra vez esta metáfora!), receberam como prenda de aniversário um braço estendido a apontar a porta da rua.

Assim, sem mais, num corte cego, automaticamente proibidos de exercer a profissão que escolheram e à qual dedicaram grande parte da sua vida, anos e anos de esforço e de estudo. Décadas de experiência e saber acumulados atirados de uma assentada pela janela.

À resignação de outrora sucede hoje, porém, a indignação de quem não se conforma com a sentença que lhe foi aplicada. Só nos últimos tempos, Gentil Martins, Jorge Miranda, Daniel Sampaio, Manuel Antunes, Constantino Sakellarides vieram a público dizer de sua justiça.

É um preconceito vertido em letra de lei. Uma discriminação em função da idade, chamada “idadismo” e literalmente proscrita pelo artigo 59.º da Constituição.
Uma grave discriminação, tanto mais que o limite de idade não é aplicável aos titulares de cargos políticos e não vale seguramente para o setor privado. Uma restrição injustificada da liberdade de escolha e exercício de profissão.

Porque não há mal que sempre dure, a acreditar numa das notícias destas férias, este decreto do tempo da outra senhora vai finalmente ser revogado. Vai cair às mãos da geringonça, tão amiga que ela está dos “cidadãos de idade avançada” (note-se que a geringonça nunca usaria a palavra “velho”, por causa do sistema de censura montado por um dos seus parceiros de coligação). Amizade tão genuína e verdadeira, quanto mais não fosse porque a idade da reforma já vai nos 66 anos e quatro meses, quase portanto a tocar os 70 anos do decreto de 1929.

Muito curioso foi ver algumas reações, sobretudo de dentro da função pública, perorando sobre a necessidade imperiosa de rejuvenescimento dos quadros, a extraordinária criatividade dos jovens e a preparação técnica dos mais novos, mas sempre (de soslaio) com um olho posto nos lugares de topo das respetivas carreiras que sempre tardam em ficar vagos. Só não falaram de “conspiração grisalha” porque essa página foi virada e não há nenhuma expressão politicamente correta que sirva para esse efeito.

Em boa verdade, porém, não são os poucos que querem continuar acima dos 70 que tapam a progressão dos mais novos – até porque continuar a exercer a profissão não significa necessariamente permanecer no respetivo lugar de quadro. Em termos estatísticos, o que tapa a progressão são mesmo os sessenta e muitos anos da idade da reforma.