Balzac descreveu, a propósito do funcionalismo público francês do seu tempo, que “o seu horizonte resume-se a pastas (e nunca a pastos) verdes. Para ele, o tempo não passa de ar nos corredores, dos odores masculinos que esvoaçam nas salas sem ventilação, do pivete dos papeis e das penas”.

Num evento que o OPCR – Observatório Português de Compliance e Regulatório promoveu a propósito de MedTech tivemos ocasião de recordar como evoluíram, no tempo e sobretudo na abordagem dos poderes públicos, a relação dos cidadãos com o Estado e a intervenção do Estado na nossa vida diária. Inicialmente entendia-se que não era lícito ao Estado impor quarentena aos cidadãos que regressavam ao país, provenientes do epicentro da pandemia hoje global que nos roubou direitos e liberdade individual.

Alertámos então que – ainda que compreendendo a necessidade das medidas adotadas – seria sempre essencial manter foco na causa das coisas, no fundamento que nos levou a impor tamanha intrusividade na vida dos cidadãos.

Com o milenar argumento de que não nos sabemos governar, porventura mais real no tempo dos romanos, fomos declarando excecionalidade atrás de excecionalidade e, com isso, decretando limitações aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Prazos judiciais, acesso aos serviços públicos, capacidade de resposta de serviços públicos essenciais, circulação no território nacional, a própria possibilidade de – com responsabilidade ou segurança – nos deslocarmos ao exterior das nossas casas ou deixar as crianças brincar no espaço público, tudo isso foi relegado para segundo plano, em função da cruel realidade.

Pelo meio, enquanto se admitia – e bem – a necessidade de garantir espaço para a reserva da vida privada dos trabalhadores na utilização dos meios tecnológicos a estes disponibilizados pela respetiva entidade empregadora para a execução do conteúdo funcional reservado à respetiva função, enquanto se discutia a proporcionalidade do tratamento de dados exigido às entidades obrigadas para garantir objetivos tão relevantes como a prevenção do branqueamento e do financiamento de terrorismo ou o estabelecimento de mecanismos de reporte de irregularidades (linhas de ética ou whistleblowing), debateu-se sobre a adequação de – na espuma dos tempos estabelecer a obrigatoriedade de download e manutenção de uma aplicação assente na utilização de funcionalidades de localização e tratamento de dados de saúde. Discutiu-se, mesmo, a possibilidade de conferir às autoridades policiais funções de fiscalização do espaço privado (residencial) ou dos terminais de comunicação (telemóveis) dos cidadãos.

Como Balzac alude no mesmo escrito, “É por isto que as leis não passam muitas vezes de regulamentos e as atitudes se tornam muitas vezes leis”.

Regressados à normalidade possível nos tempos que correm, parece resultar natural que se espere do poder público uma abordagem consistente da privacidade dos cidadãos, do processamento dos respetivos dados pessoais e, sobretudo, uma abordagem coerente de uns e outros em função dos valores fundamentais da sociedade.

A suspensão de direitos, liberdades e garantias deve ser reservada a situações de verdadeira excecionalidade, comprovada e não expectável, atual e não previsível. E o mesmo empenho que se registou para a gestão da coisa pública (e, mais discutível, da capacidade dos serviços públicos) em cenário de pandemia deve ser também dirigida à tutela de valores fundamentais da sociedade, necessários à regulação eficaz, ao estabelecimento de sistemas de compliance efetivos e, também, à promoção de um ambiente de sã concorrência e transparência de atuação dos agentes económicos no mercado.

Vamos – porventura tarde – a tempo de recordar a causa das coisas.