“Um princípio de Governo em que todas as pessoas, instituições e entidades, públicas e privadas, incluindo o Estado, são responsabilizáveis por leis que são promulgadas publicamente, aplicadas igualitariamente e adjudicadas de forma independente, consistentes com as normas e padrões dos direitos humanos internacionais. Requer igualmente medidas que garantam a adesão a princípios de supremacia da lei, igualdade perante a lei, responsabilização pela lei, justiça na aplicação da lei, separação de poderes, participação no processo de decisão, certeza da lei, evitando o livre arbítrio e pugnando pela transparência legal e de procedimentos.” É assim que as Nações Unidas definem o Primado do Direito (“Rule of Law”).
Daqui sobressaem dois conceitos que são a essência do Estado de Direito da Democracia dos nossos dias. A noção de que a justiça deve derivar das melhores leis e não do melhor homem para aplicar a sua lei, desenvolvida por Aristóteles. E dois mil anos depois surge a separação de poderes, nomeadamente entre o legislativo (cria as leis), executivo (implementa as leis) e judicial (interpreta as leis), pela mão de Montesquieu, sendo este segundo pressuposto o principal garante de um Estado de Direito.
O problema é que em Portugal a separação de poderes não passa de um mito urbano. Desde logo porque o poder legislativo (Parlamento-deputados) e o poder executivo (Governo) não são mais do que uma extensão um do outro, onde os deputados que suportam o Governo são apenas números num quadro, necessários para aprovar leis delineadas pelo executivo.
Repare-se na afirmação de Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, “seria um absurdo uma interpretação literal da lei”, quando, como referi, compete apenas e só ao poder judicial a interpretação das leis. Deste ponto extrai-se a génese de desintegração do Estado de Direito, pois o sistema judicial não funciona como autónomo, nem sequer tem iniciativa própria na defesa do Estado de Direito.
É muito simples, têm sido o Presidente da República ou os deputados a exigir as fiscalizações do Tribunal Constitucional. Não me recordo de qualquer retrocesso legislativo que tenha ocorrido fora deste binómio que tivesse sido originado, por exemplo, a pedido da Procuradoria, acabando os únicos casos excepcionais por resultar de processos judiciais nos quais estão envolvidas empresas com capacidade financeira, e que têm exposto diversas inconstitucionalidades, como aconteceu recentemente no caso que opôs o Vitória de Guimarães ao Fisco.
Mas se em raras ocasiões os atropelos à Constituição são descobertos, na responsabilização do poder legislativo e executivo, fulcral para a validação de um Estado de Direito, o caso seca por completo. A esmagadora maioria das denúncias e situações a esclarecer advém da comunicação social, não do sistema judicial, e, para piorar, a percentagem de responsabilizações cai para a irrelevância absoluta.
Mas porque é que a questão de um Estado de Direito efectivo é primordial? Porque não existindo violam-se diversos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o que invalida ao Estado o direito a dispor da propriedade privada do cidadão, tal como alude o art. 17 da referida Declaração, sendo antes uma expropriação através do Estado Fiscal, sem a devida compensação.
Mas existem muitos outros Direitos Fundamentais a serem constantemente violados no actual “Estado a que chegámos”, desde logo os artigos 1º e 7º, porque não nascemos todos com os mesmos direitos na prática, muito menos temos a mesma protecção da lei. Não, proteção da lei só com dinheiro, ou poder, o que por si invalida a existência do Direito ao abrigo do nº 10, que as causas de todos sejam julgadas de forma equitativa.
Continuando, considera o leitor que o Estado actual respeita o nº 3 do art. 23º? “Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social”. Como é que isto se conjuga com dignidade num país onde quase 25% da população está em risco de pobreza ou exclusão.
E termino com aquele que ao não ser respeitado tem permitido a perpetuação da podridão, o art. 21º:
“1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios, públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país.
3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos (…)”.
Acredita que tem o mesmo direito de acesso às funções públicas que os interesses instalados? Ou que é parte activa dos negócios públicos do seu país? Mesmo indirectamente, considera que os seus “representantes” o(a) representam realmente? Ou representam-se a si próprios? Acredita que com 44,1% e 69,3% de taxas de abstenção nas últimas eleições legislativas e europeias, está salvaguardada a vontade do povo, que confere autoridade ao poder público?
O que fazer com quem não se identifica com qualquer das alternativas escolhidas a dedo pelos aparelhos partidários para perpetuarem o seu poder, e assim não vota, ou vota nulo? Como é que se vota em alguém em quem não se acredita?
São todas questões da maior importância que, no entanto, merecem ZERO intervenção da classe política, que não quer mudanças. O problema é que, no final de contas, na Declaração dos Direitos do Homem, não há uns mais importantes que outros. Ou seja, o direito à circulação, expressão, casamento, não discriminação, etc., não são superlativos daqueles que referi aqui, nomeadamente o de não ser um escravo da máquina fiscal para pagar contas de quem se tem enchido “em nosso nome”.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.