Uma mulher que não denuncia por ter medo não deve ser condenada. Deve, sim, ser apoiada para que o decisor principal deixe de ser esse medo. Trata-se de uma encruzilhada, e das mais difíceis de resolver.

Confesso que tenho alguma resistência em abordar temas que, por um motivo ou outro, tenham merecido o buzz dos dias e alimentado a cacofonia das redes sociais digitais, de onde emergem seres únicos – mais ou menos humanos. Contudo, e porque o tema me é tão próximo e tão doloroso para tantas mulheres (e para pessoas que se encontrem em situação de vulnerabilidade por causa do seu género), não consegui deixar-me no canto (in)tranquilo do silêncio.

Podia contar-vos histórias pessoais de assédio, mas sinto que – e com muita mágoa o digo – não estaria preparada para o rol imenso de questões, difamações, diminuições, processos judiciais e outros castigos que tais. Aliás, no tempo dos acontecidos, após um desabafo ao segredo dos deuses, foi dito em jeito de resposta às minhas mágoas, aos meus medos e às minhas inseguranças: “Pensas que ser mulher bonita não tem os seus custos? Por isso, culpa a tua mãe.” E assim o segredo dos deuses passou a memória cruel, inexplicada e, acima de tudo, sem voz.

Esta minha vontade de falar de um possível advento do movimento #MeToo em Portugal surge para apoiar e multiplicar as vozes de mulheres-coragem como a Sofia, a Catarina, a Joana, a Lídia, a Mariana ou a Cátia. Mais ou menos célebres, estas mulheres tiveram coragem de enfrentar o espaço público, claramente dominado pela voz segura do(s) líder(es) que, em Portugal, têm tanto de cínico como de ‘tradicional’.

Portugal não é para mulheres. Principalmente, para mulheres que ousem servir-se da ágora para ter voz, partilhá-la e denunciar casos de assédio. Portugal não está preparado para refletir sobre a sua fortaleza machista, o seu invólucro sexista e a sua aura misógina.

Não está. Por isso, junto-me a este conjunto de mulheres – e tantas mais – e digo o que todas, de uma forma ou de outra, já experienciámos: “Eu fui vítima de assédio sexual”. E como este conjunto de mulheres, não me sinto segura para denunciar o nome dos agressores. O medo das consequências trava-me. E penso nas causas. Como boa herdeira da cultura patriarcal, fico-me pelo silêncio agonizante. Mortificada, tão mortificada com a Sofia, a Catarina, a Joana, a Lídia, a Mariana ou a Cátia.

Depois de muito pensar, de muito me autoflagelar, percebi que as causas deste medo e do silêncio atroz são tão claras como a clareza da dor vivida em silêncio, décadas a fio. Ei-las, então:

1. Paz pública – as mulheres são educadas a criar harmonia, a cuidar primeiro dos outros e depois de si, a não interromper, a não ter opinião, a não competir com homens e sim com as suas pares, a não incomodar os valentes machos alfa que, quais descobridores ou colonizadores que a história continua a glorificar, querem o melhor para o (seu) mundo.

Falar com público pouco habituado a escutar denúncias de crimes sobre mulheres é estar preparada para um escrutínio sem-fim, é perceber que ela, a vítima, antes de qualquer justiça formal, será condenada em praça pública por falar, por ousar entrar naquele espaço que, por natureza, não é o dela (e assim continuam a falar os velhos do Restelo). A solução, que evita a dor pela exposição pública sem defesa e ataques vis à sua dignidade, integridade e, não raras vezes, à sua carreira e ao seu sustento, é o silêncio. Uma espécie de paz pública que a mulher continua a sentir-se obrigada a promover.

2. Medo – as mulheres são educadas desde jovens a serem “meninas bonitas” dentro de um muro de medos que advém da representação do seu ‘papel’ de segundo plano, com necessidade de proteção de seres ‘superiores’, dada a sua ‘fragilidade’ construída. Mais: se das mulheres é esperada a reprodução da espécie, sobre elas recaem todos os medos da impossibilidade de engravidar, de não querer engravidar, da possível perda, do cuidado das crianças, da educação de meninas rosa e de meninos azul. Sobre ela sobrevoam sonhos de liberdade que estes e outros medos travam.

3. Insegurança – se já é um trilho exigente o percurso que qualquer mulher faz na sua vida diária, a insegurança recrudesce quando imaginamos que um pedaço do mundo nos poderá vir avaliar, derrotar pelo vilipendio. Se andar numa rua escura é um ato de coragem, imaginem o que seria a vida da mulher que denuncia sem apoio; se postar nos média digitais é arriscado, imaginem o pós-denúncia de assédio? A falta de segurança é dominadora e este país continua a fingir que episódios recorrentes de assédio são, claro está, culpa da própria mulher (ouve-se novamente os velhos do Restelo).

4. Solidão e culpa – o silêncio da vítima de um crime (que muitas vezes nem sabe que é disso que se trata) é vivido quase sempre numa sôfrega solidão e numa culpa lancinante. A partilha do acontecido é a caixa de Pandora que pode resultar numa condenação da própria por atos, omissões e culpa – minha tão grande culpa, reza-se – que só um ato de contrição poderá resolver. Entre a solidão e a culpa, segue a história silenciada de incontáveis mulheres no nosso país. Portugal não é para mulheres. É para o canto de um fado antigo que teima em revisitar-nos sempre que uma de nós prega por justiça.

O que mais me tem indignado é ler incontáveis alarvidades que centram esta culpa nas mulheres: nas que denunciam num cenário totalmente adverso e nas que não se sentem seguras para denunciar. E nunca ler sobre o medo, o muito medo da agressão, da exposição e da culpa. Outra vez da culpa de tantas vítimas. Imaginem que são atribuídos nomes. O que será destas mulheres que vivem num país coberto pelo cinzento do aparente bem comum, que finge em bloco não ser misógino (“Eu não tenho nada contra as mulheres, mas que não queiram agora tudo!”), que vira a cara para o lado quando se fala das comunidades cigana, afrodescendente e LGBTQ+, afirmando: “Eu não tenho nada contra eles, mas que fiquem longe e não se metam comigo!”, continuam os velhos do Restelo.

É claro que este silêncio das vítimas justificado pelo medo e tanto mais, acompanhado pelo silêncio cúmplice dos agressores, leva-nos à encruzilhada de duas dimensões:

1) Ao lugar de não-fala. Quantas vezes já testemunharam uma mulher a expor os seus argumentos e a ser apelidada de histérica? E quantas vezes já testemunharam um homem a ter uma atitude semelhante e a ser elogiado pela firmeza e assertividade?

Quando uma mulher se cala com medo do escrutínio público, principalmente, porque os agressores são, na maioria das vezes, superiores hierárquicos com grande poder nas organizações, ela está, por um lado, a proteger-se do entorno vil, e, por outro, está, de certa forma, a ceder o seu lugar de fala, transformando-o em lugar de não-fala. É uma encruzilhada, esta. Uma montanha de silêncios que, cedo ou tarde, terão de chegar ao espaço público. Mas só no dia em que a sororidade (irmandade e apoio entre mulheres) em Portugal for tão assumida e premente como, por exemplo, em Espanha, com o #YoTambien muitíssimo disseminado.

2) Ao crime sem castigo.  Há uns anos, a CooLabora criou o mapa da violência sobre mulheres em espaço público na cidade da Covilhã. Num trabalho conjunto, que partiu da recolha de testemunhos de agressões, assédios e outros crimes, o mapa – digital e físico – situou um conjunto significativo de histórias que ganharam lugar e voz pública. Lembro-me que, à data da ação pela cidade, um homem abordou o movimento tentando expulsar-nos do espaço em frente ao café de que era dono. Evitando grandes alaridos, lá seguimos o nosso caminho, não antes de assinalar o espaço onde uma mulher tinha sido assediada.

Hoje dou por mim a pensar que aquelas dezenas de crimes que assinalámos nas ruas da Covilhã ficaram, na grande maioria, sem castigo. Por outro lado, o que seria daquelas vítimas se tivessem denunciado o nome dos agressores? Está este país preparado para estancar e rejeitar qualquer tipo de violência de género? Está este país preparado para verificar, primeiro, o denunciado e, só depois, quem denuncia? Estará este país preparado para não atribuir a culpa primária – e todas as outras – à mulher? Estaremos nós, mulheres, preparadas para nos defendermos como se de uma missão se tratasse? Ainda não.

Este país não é para mulheres, pois, que ousem passar pelo espaço que não lhes foi historicamente atribuído. Este país não é para mulheres, pois, que ousem questionar a distribuição hierárquica injusta em grande parte das organizações. Este país não é para mulheres… [som de disco riscado]. Ele só passará a ser tal, de facto, quando o sofrimento de uma for o sofrimento de todas; quando a agressão a uma for a agressão a todas; quanto o assédio a uma for o assédio a todas. Só nesta altura é que a resposta será mais forte, mesmo que o medo, a insegurança e a culpa nos gelem o corpo e condicionem as nossas ações. Faz falta mais sororidade em Portugal. Sem ela, este país continuará a não ser para mulheres. Com ela saberemos sair desta encruzilhada que nos entorpece.